quinta-feira, 29 de janeiro de 2015

Tenho-te sonhado meu amigo


Desponta a manhã por cima do outeiro, com cores quentes no Inverno de Janeiro, vem lentamente o Sol doirar o meu quarto onde já estou acordada e não sei levantar-me. Digo em silêncio o costumeiro Bom dia, Espírito Santo!  que me foi recomendado por uma antiga irmã e que continuamente me parece renovado, e nessa oração calada peço por tranquilidade e um coração novo farto de inspiração. 
Ergo-me lentamente como ainda despertando de um sono profundo, sinto o frio das primeiras horas enregelar-me, visto rapidamente o que estiver à mão sem grandes preocupações estéticas e deambulo pela casa até conseguir compreender a lógica das cousas. Entendo somente a minha imagem reflectida no espelho do guarda-vestidos, parece-me um pouco apática, ligeiramente atemorizada com as representações de velhos monstros de infância.
Mas a vida tem o seu sentido, procura-se por aquilo que se tem de fazer e descansa-se quando se esquece que se perde o tempo que não temos. Sento-me na secretária junto à grande janela, perco a lembrança de que o relógio bate atrás de mim e escrevo as primeiras palavras da semana. Lá fora a realidade é em tons de tristeza, com alguns detalhes em cor castanha que quebram a monotonia dos verdes abandonados e dos grandes edifícios sem vida. Com os adultos no trabalho, as crianças fechadas na escola e os idosos sozinhos junto à lareira, a cidade é deserta, mas o tempo não perdoa nem se ausenta nunca e de hora a hora sentimos a sua presença nos sinos da igreja. Porém, o rejubilo germina em mim quando te recordo no meu último sonho. 
Tento captar as belezas de aqui e de acolá toda a manhã, toda a tarde, e no entanto quando me estendo sobre a cama no calor das cobertas pesadas e a cabeça descansa sobre a travesseira é que o meu coração sente na perfeição os pés frios enrolados nas meias grossas, e se enche da minha alma e da minha memória. Assim, na treva da noite as angústias do mundo caem sobre mim. Imagino aquele que chora envolto na sua solidão, aquele que vive no fundo de uma avenida e aquele que ficou encerrado na sua época glória sem se conseguir libertar, e estes retratos de tristeza e desolação prendem-me o respirar e fazem-me sentir grandes aflições por mim, por ti e pelos outros. Mas o sono vem, mesmo que tardando tanto, e sonho com dias felizes e imagens aleatórias que sei não serem reais. Estás sempre lá, porém.   
Desde há muitos anos que me apareces das noites frias de Inverno às noites quentes de Verão  e os nossos tempos são de harmonia como a Primavera e o doce Outono. Se estou passando na multidão e te vejo ao de largo vou ao teu encontro e tu ao meu, fugindo para onde o barulho não fere o nosso silêncio de ouro. Somos amigos, mesmo dialogando raramente, porque apenas se procura a companhia de quem queremos bem e sempre que sonho é sempre que te sonho. 
Vejo-te sorrir ao final da semana, estendes-me a mão e dizes o meu nome que nunca te contei. E se sabes o meu nome e eu o teu porque não seremos amigos? Cumprimento-te a medo, sem nunca o fazer à noite, mas já corremos pelos campos verdes e já restauramos a vida a uma rosa partida. Observa no fundo dos meus olhos e adivinha a amizade que já construímos nos fragmentos de sonhos, mas com palavras poucas porque conheço já o teu coração e tu o meu. Sei de cor o som do teu riso, guardo no coração todas as tuas gentilezas e edifiquei para ti um templo dentro da minha alma, acredita-me.
É possível que um dia onde o Sol brilhe mais nos fiquemos quietos contemplando a vida debaixo de uma árvore e saibas que te tenho sonhado meu amigo. Nesse dia ditoso os anjos cantarão e o mundo ficará a conhecer daí em diante o significado de uma verdadeira amizade.


sexta-feira, 23 de janeiro de 2015

Algibeiras Furadas



Num fim de tarde eram vinte horas, João voltava à sua casa para jantar. O apetite que não levava, juntamente com a bebida que o fartava impediu-o de reparar num automóvel que estava parado à sua porta.
Entrou, subiu a escada, e ao chegar à porta ouve uma voz que grita estridentemente.
— Minha Senhora, sou a esposa do dono do café onde o seu marido costuma beber sem limite, e fugir sem pagar, por isso se não pagar o que deve, faço aqui uma escandaleira que toda gente fica a saber.
João à porta hesitou antes de entrar, cumprimentou-a polidamente com um simples:
– Boa noite.
Mas a mulher lançou-se sobre ele e com uma voz alterada, diz-lhe:
— Senhor, eu sou a esposa do dono do café, onde costuma ir beber até fartar e sair sem pagar.
 — Desculpe não a reconheci, sabe eu só vou ao café ao fim da tarde, já está meio escuro e eu não sou bom para rostos.
 — Não me reconhece! Não me reconhece! … quer juntar o gozo à caloteirice?
 — Minha senhora desculpe-me, não se trata disso, deixe-me explicar.
A senhora deu um passo para ele, ameaçadora.
— Deixe-me explicar? Deixe-me explicar? Que explicação tem sair do café sem pagar?
A esposa do João assistia atarantada àquela cena sem saber o que fazer.
— Ó homem afinal o que se passa? Que raio é que tu fizeste?
Mas o João, a quem o vinho tinha dado alguma eloquência sentiu-se com a situação controlada:
— Que raio é que eu fiz? Perguntas que raio é que eu fiz? É boa! Já te disse mais que uma vez, que isto ia acontecer, se o problema não fosse resolvido.
— Se o problema não fosse resolvido? De que é que tu estás a falar? Não me metas nas tuas sacanices que só me envergonham.
A dona do café que não compreendia nada do que se estava a passar, desabafou:
— Eu não quero saber da vossa vida, vim aqui para resolver a minha.
— Mas se o problema não for resolvido, eu não poderei nunca pagar a minha despesa. - Conclui o João.
A esposa do João vermelha de raiva e vergonha, e sem perceber as razões do marido:
— Ou dizes o que se passa ou vamos ter caso e grave.
O João mete as mãos às algibeiras das calças, puxa-as para fora e perante o espanto das duas mulheres, mostra:
 — É que eu tenho as algibeiras furadas, por isso perco todo o dinheiro que levo comigo, é essa a razão de nunca poder pagar.

segunda-feira, 19 de janeiro de 2015

Passado?



A luz matutina brincava no seu rosto. Não tivera sono tranquilo. Antes, voltou a ser aterrorizada pelos sonhos com túneis escuros, gritos angustiados e o aluvião arrastando-a implacavelmente para as profundezas, enquanto a dor e o medo de morrer afogada a atormentava. Levantou-se e julgou ouvir o canto do galo de pescoço careca. Aguçou o ouvido e não ouviu mais nada além do trinar das aves. Apreciava esse canto mas não reconhecia o lugar onde estava. À sua volta, um quarto desconhecido. O reflexo no espelho da penteadeira, este delineava alguém, na qual não se reconhecia. Tocou o rosto sonolenta como para se descobrir na imagem que o espelho reflectia, mecanicamente dirigiu-se à casa de banho que também lhe pareceu estranha e diferente do habitual, cuidou de lavar os olhos e pentear os cabelos. Continuava a não se reconhecer, voltou ao quarto e atirou-se para a cama incapaz de compreender ou enfrentar o pesadelo que vivia. Com um assomo de coragem voltou a olhar-se ao espelho e voltou a não se reconhecer no que via, ou melhor no que o espelho reflectia, atónita via que era a sua imagem vinte anos antes que os seus olhos encontravam, só podia estar a viver um pesadelo, olhou à sua volta e tudo o que via retratava a sua vida já há muito tempo passada, lentamente foi reconhecendo que o quarto, era o seu quarto de solteira, a cama, a penteadeira, os posters nas paredes, (como a sua mãe se zangava com isso) tudo pertencia ao passado, esfregou mais uma vez os olhos numa tentativa mais de sair do tormento, nada mudava sentia que estava a enlouquecer. Lentamente vestiu o robe e iniciou a descida da escadaria de acesso ao hall principal, desejando que o movimento a fizesse despertar para a realidade, enquanto descia cada vez mais o passado estava presente, quando atingiu o patamar que a escada fazia, a sua mãe apareceu no fundo e gritou:
 - Ainda estás assim? Ó tempo que o Marco espera por ti.
Abriu desmesuradamente os olhos o espanto atravessou todo o seu ser, à sua frente a imagem da sua mãe tal com há vinte anos, subitamente ao lado apareceu Marco, seu marido que olhando para ela perplexo observou:
- Então que se passa, esqueceste que combinamos ir almoçar à quinta onde vai ser o jantar do nosso casamento?
Deu um grito angustiado e caiu desamparada ao chão.

domingo, 11 de janeiro de 2015

Debaixo da árvore de Natal: o Cão e o Menino


O cão entrou na sala e foi-se sentar no canto do sofá, onde chegava em pleno o calor das labaredas da lareira. Ficou envolto no seu próprio corpo, a ver o tempo anoitecer-se através das janelas, num fim sossegado para um dia de grandes agitações. Os trabalhadores retornam a casa e o cão espera pelo seu dono no lugar onde se sente acolhido pelo quente da fogueira. O tempo passa constantemente e é ligeiro, mas tedioso, ladra um outro cão ao longe, os automóveis rompem as estradas, ouvem-se conversas, porém o silêncio é imperativo dentro do lar. A solidão é uma grande companhia, a menos que esteja acompanhada pelo abatimento. O cão bufa de vez em quando, suspira pela mão carinhosa que lhe acaricia o pêlo, observa as luzes que se acendem nas ruas escuras. Levanta-se, alonga as patinhas num espreguiçar demorado, passeia-se pela divisão e ocorre-lhe ir aninhar-se perto do Menino, que está debaixo da grande árvore iluminada, esquecendo-se da realidade tão vazia de alegrias grandes. Arrasta as ovelhinhas, os pastores, a Maria, o José e os outros animais, estende-se junto do bebé, chega o focinho ao seu rosto pequenino e lambe-o num afago genuíno. A madeira arde com vigor, o velho cão mantem-se fielmente junto ao Salvador, que de condição tão humilde fica abandonado e ofuscado por um mar de luzes cintilantes, é frágil e carente de toda a atenção e no entanto só este cão parece sabe-lo. Mas já não reinam as trevas, o bebé não chora, fica-se sereno, divinamente embalado e com os bracinhos estendidos num convite permanente ao conforto do seu amor. O bichinho pensa que O protege e aquece, todavia é Ele que lhe traz a ternura que o seu coração enfastiado precisava, naquele cantinho da sala encontrou o verdadeiro lar que lhe faltava e o carinho pelo qual ansiava. Ouviu finalmente abrir-se a porta de entrada que denunciava a chegada do dono, largou o recém-nascido e correu a festejar a vinda do seu amigo. Ladrou, saltou, acarinhou-lhe, correu e por fim foi puxando-lhe as roupas conduzindo-o até ao seu novo canto, de modo a que quando chegou não pôde evitar reparar no bebé que o esperava há muito debaixo da árvore.   

quarta-feira, 7 de janeiro de 2015

Pensar o Infinito


Cara amiga


Sugere-me o tempo que vivemos, fim de ano princípio de outro, que retome a comunicação epistolar iniciada pelo Natal. Toma estas palavras, apenas como a minha forma pessoal de reflectir sobre mim e a minha perspectiva sobre as coisas. 
Deste viver português tão incaracterístico, com conflitualidades adormecidas e ou reais embaraços e pessimismos, talvez seja bom proceder a uma depuração, para encontrar motivos que nos levem a superar esta onda que nos esmaga nos tolhe e impede de olhar mais além. 
Talvez seja bom, não procurar nos acontecimentos ditos importantes, que juntamente com pessoas ditas igualmente importantes, nos chegam a casa todos os dias e afinal sem novidades nem motivos de esperança. 
Agora que Novo ano iniciou, e com ele todo um conjunto de situações com grande impacto mediático, recomeçamos a ser alvo de um conjunto de falsos acontecimentos, cujo único objectivo parece ser distrair-nos do essencial do nosso viver comum, e mais ainda muitas vezes nos distrai da nossa busca pessoal de encontro do caminho próprio para a felicidade.
Por isso te desafio não te limites nem limites o teu olhar e o teu pensar, sempre que olhares lança um olhar mais além, fecha os olhos e vê com o pensamento.
Faz teu o lema “ Pensar o infinito”, mas o infinito é esse aberto que paradoxalmente começa e acaba dentro de nós, sem a nossa vontade de nos transcendemos e olhar mais além, de pensar para além dos nossos limites de vivermos o infinito que existe dentro de nós, seremos sempre vencidos pelo árido e incaracterístico ziguezague das estradas suburbanas, conduzidos para o futuro limitado que se adivinha das florestas de apartamentos colados a apartamentos. Cenários que poderão limitar a nossa vida e a nossa história pessoal, limitação que tu não mereces e que eu sei que és capaz de ultrapassar 
“Pensar o infinito”, implica transcender-se, ir ao âmago do mais pequeno, abraçar a totalidade do ser, sentir mais intensamente o todo universal, conscientes que isso implica, que cada um se deixe encontrar humildemente com os seus limites e totalmente com as suas possibilidades.
Neste tempo de baixas exigências, resultados rápidos e objectivos imediatos, como é o tempo em que vivemos, “Pensar o infinito”, pode constituir uma aposta na esperança, porque é uma aposta antes de tudo em ti própria e na capacidade que tu e cada um, de construir um tempo diferente. 
Sei porém que a esperança a verdadeira esperança pede-te e a todos nós coragem e empenhamento.

Com amizade

Um bom ano. 

quinta-feira, 1 de janeiro de 2015

Primeiro de Janeiro


É dia um de Janeiro, o Sol aparece a prever um ano de novas esperanças e conquistas, a família mantém-se junta na sala sempre perto da lareira, que é depois dos nossos corações a maior fonte de calor da casa, os cães estendem-se pelo tapete ou junto aos nossos pés e os raios de luz que vêm da janela aquecem as costas do meu pai. 
A avó pede-me para sairmos à rua e, embora com pouca vontade de acção, acompanho-a ao encontro do astro-rei. Descemos as escadas e logo sentimos a avenida como nossa, dirigimo-nos para a igreja onde o Sol bate com maior intensidade e as árvores junto dos bancos do jardim nos parecem mais belas. Caminhamos lado a lado, vou com a mão debaixo do seu braço, não sei se a ampara-la ou simplesmente a aquecer-me, falamos de muita coisa e de coisa nenhuma, enquanto evitamos os carros ao passar de uma margem para outra. A avó gosta de pensar que as estradas são suas só porque anda com bengala e espera, por isso, que os condutores sejam gentis, deste modo fugimos de todas as passadeiras e seguimos em frente pelo meio da estrada, onde passamos intocáveis em todas as ocasiões. Continuamos, umas vezes a caminhar outras sentando-nos em frente aos portões da igreja, devido ao estado fragilizado das pernas da avó. Damos a volta ao adro e conversamos sobre uns roubos que ali se passaram há muito tempo, ela vai interrompendo de quando em vez para suplicar a Deus que lhe devolva a vivacidade que lhe permitia vir a todas as Eucaristias e rumamos para casa logo a seguir. 
Sempre devagar e reparando no jardim que ladeia o nosso edifício levo as mãos quentes do calor do bolso e do calor do braço da avó, encaixamos as chaves nas portas e entramos silenciosamente para o lar onde a avó fica uns instantes encostada à parede à espera que a variação de luz lhe permita ver novamente. E aqui me apercebo que tal como os cães que levamos diariamente a sentir o ar no focinho, também a avó me faz sair. De verdade, ainda que eu a auxilie é ela que me guia e me faz sentir que a vida se passa onde não estou e onde a realidade se sente e se acha aprazível. 
E assim, ao introduzir-me de novo no local onde vivo, trouxe um pouco de Sol numa das algibeiras que não usei e acendi a minha alma pequenina, de modo que mesmo longe da lareira o meu corpo repousa e não sente frio.

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