segunda-feira, 20 de agosto de 2018

AS SOMBRAS


                   



             
                           Imagem Google 

                  AS SOMBRAS

Quantas vezes nos cruzamos com pessoas que não passam de sombras, como se estivessem cobertas com um manto de invisibilidade. Vemos as formas ainda que que as apreciemos esteticamente, não vamos além disso.
Nunca fixamos o olhar no olhar, mais do que anónimas, essas pessoas são invisíveis.

No meu pensamento vão passando, diversos tipos de invisibilidade.
Um homem de meia-idade de que não me lembro o rosto, mas que segue num caminhar hesitante como se procurasse onde pisar, cuidadosamente vestido, numa observação breve dir-se-ia que vivia uma existência igual a tantas outras na rotina dos dias que passam, coberto com o manto da invisibilidade que lhe cobria a alma, mostrava no jeito de caminhar um pouco de todo o resto que  permanecia escondido.
Um homem ainda jovem, talvez um pouco acima dos trinta, caminhava como quem dança, os seus passos demonstravam alegria e confiança, no caminhar parecia querer transmitir ao mundo a razão da sua felicidade. Quando demorei o meu olhar sobre ele, como se sentisse culpa pela sua felicidade, ficou coberto pelo manto da invisibilidade e desapareceu na multidão.
Desisti de tentar descobrir o que transportavam na alma, as pessoas com quem me cruzava, seria sempre uma tarefa impossível, além disso não veria eu nos outros o mundo que eu próprio trazia dentro de mim?
Cobrindo-me também com o manto da invisibilidade, impedindo que os outros me vissem com claridade para além da minha forma?
Afastei estes pensamentos consultei o relógio, tinha um compromisso com horas bem determinadas, uma analise ao sangue que tinha que ser realizada três horas depois do almoço, calculei que o tempo chegava, e fui vaguear para um centro comercial.
Pelo aproximar da hora, dirigi-me para o laboratório, o espaço entre o centro comercial e o laboratório não era mais que cem metros. Por isso enquanto me deslocava ia olhando distraidamente à minha volta.   
Sem saber de onde uma mulher talvez na casa dos quarenta anos, vestida com descrição no rosto sinais de uma intensa tristeza, mostrando firmeza nos passos que dava, aproximou-se de mim entre resoluta e alguma timidez, parou a minha frente e com o olhar meio virado para o chão, com uma voz cheia de doçura mas que saía longínqua.
- Quero vir viver para a cidade- Interrompeu a frase como quem arruma as ideias. E repetiu
- Quero vir viver para a cidade.
Fiquei sem saber que responder, ela baixou mais o rosto à espera de uma resposta.
- Na cidade existem diversas imobiliárias, algumas também tratam de contratos de arrendamento- Balbuciei a medo
- Quero vir viver para a cidade- Voltou a repetir, agora com mais força, e continuou.
- Pode ajudar-me a procurar casa?
Fiquei sem saber que responder, olhei para o relógio como um processo de fuga, e sem jeito respondi.
- Lamento mas tenho que realizar um exame médico.
Atabalhoadamente tentei indicar o caminho para uma imobiliária, no rosto dela transpareceu por momentos a mágoa de um desgosto real, levantou a cabeça despediu-se com secura, e coberta pelo manto da invisibilidade, aparentemente seguiu as minhas indicações.
Entrei na porta de acesso ao laboratório, parei uns segundos no hall de entrada, voltei-me e saí a correr. Todas as pessoas me pareciam sombras dela, sabia que se seguisse na direção por mim indicada não poderia estar longe, subi pelo lado esquerdo da Avenida, desci pelo lado direito, todas as pessoas com quem me cruzei eram apenas sombras.
Voltei ao laboratório, realizei os exames num silêncio atroz, que levou a enfermeira a perguntar.
- Está tudo bem consigo? Passa-se alguma coisa? Está a sentir-se mal?
- Não, está tudo bem.- Respondi ausente.
A enfermeira terminou a recolha do sangue, retirei-me e voltei à rua com a ilusão de que tudo se voltaria a repetir e desta vez agiria diferente.
Com passos incertos e inseguros fui percorrendo as ruas que confluíam para o ponto em que se tinha dado o encontro.
Nem vestígios e dei por mim a pensar, que senão ouvisse a voz dela, mesmo que a visse não a reconheceria.
Que restou? Apenas uma sombra coberta por um manto de invisibilidade, rompido apenas por uma voz, que ainda hoje seria capaz de reconhecer.




                                                                                        Herminio














quarta-feira, 8 de agosto de 2018

INVISÍVEIS

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INVISÍVEIS
Imobilizado na cama de um hospital, depois de uma cirurgia motivada por um problema cardíaco, a colocação de diversos instrumentos de controlo e apoio a algumas funções fisiológicas, limitava e muito qualquer movimento. Esta imobilidade no entanto era quebrada com regularidade por efeitos de mudança de posicionamento.
O tempo passava lento e monótono, a ronda habitual do pessoal hospitalar, médicos, enfermeiras e pessoal auxiliar, representava uma quebra na minha solidão, que não no meu silêncio, a máscara que ia normalizando a minha respiração limitava a possibilidade de articular qualquer palavra.
O bloco onde me encontrava, Cuidados Intermédios, como todos os espaços pós operatórios, era austero silencioso e austero. Um pouco por efeito da anestesia e muito pela circunstância de a iluminação ser totalmente artificial, com longos períodos de penumbra, causava uma desorientação temporal e mesmo espacial, o sentido do tempo e do espaço perdiam-se.
Não sei que horas eram se noite se dia, sentia-me cansado na posição em que me encontrava, esperava com impaciência que a ronda chegasse. Apesar de dispor de um sistema de chamada, tinha a noção que o tempo atribuído a cada posição era o correto.
A iluminação estava muito ténue, os passos cuidadosos no corredor soavam-me distantes, no meu quarto e apenas pelo respirar deduzi a presença de alguém na mesma situação que a minha. Nada sabia sobre ele, para mim, tal como certamente eu para ele, estava em presença de um invisível. Éramos invisíveis um para o outro.
De momento estava deitado sobre o lado direito de costas para a entrada, as portas de entrada eram de vidro, por isso qualquer variação de iluminação no corredor se refletia dentro do quarto, normalmente procedia a entrada de pessoal hospitalar, que vinham realizar as tarefas necessárias ao bem-estar dos doentes.
O cansaço venceu-me, o botão da campainha de chamada estava bem próximo da minha mão, com algum esforço alcancei-o, subitamente no corredor os passos soaram-me mais intensos, a minha sombra agigantou-se na parede, alguém tinha entrado no quarto, larguei da mão o botão da campainha que se escapou e ficou bem distante.
Um dos conjuntos de iluminação do tecto acendeu-se a iluminação ficou mais intensa, a minha sombra perdeu o ar ameaçador por efeito da sombra projectada pelo vulto, com leveza os passos soaram já dentro do quarto, senti que alguém invisível se dirigia para o lado oposto ao meu, sustive a respiração e pensei: há-de chegar a minha vez.
Ouvi o sussurro de algumas palavras, sem as conseguir entender, e fiquei à espera.
Pelo ruído percebi que tinham acabado os cuidados do outro doente, e aguardei.
Os passos não enganavam vinham na minha direção, chegaram bem perto de mim, de pé o vulto projetava um ligeira sombra na parede, rodou ligeiramente para observar um dos equipamentos, um toque de som moderado de um telemóvel, interrompeu os gestos que ficaram a meio, tudo parou, atendeu com cuidado o telemóvel e afastou-se um pouco, ouvi uma voz gritada, não percebi o que dizia mas era uma voz irada.
Com doçura o vulto respondeu: Mas mor eu ontem disse-te que…
A chamada caiu abruptamente, ouvi um som de irritante de chamada interrompida, em seguida tentativas de marcação, entrecortadas por soluços de choro sufocado, que tinham como resposta, uma duas três quatro um sem número de vezes, uma gravação que ia repetindo como martelo aos meus ouvidos:
- O número que marcou não tem Voice mail activo  
O choro aumentou, na parede a sombra do vulto estremecia.
Girou o corpo, em choro sufocado, lentamente se afastou de mim, enquanto se afastava a sua sombra diminuía na parede dando de novo lugar à minha. A luz apagou-se a penumbra voltou, os barulho dos passos foi-se tornando cada vez mais longínquo e desapareceram.
Alguém invisível atormentou a vida de outro invisível, e invisível fiquei cansado da minha posição.


                                                                         Herminio 

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