A
FABULOSA VIDA DE MATILDE
PÁSSARO
FERIDO
Nas suas deambulações
pelas vizinhanças, umas mais próximas, outras mais longínquas, Matilde deparou
com uma casa antiga e já um pouco degradada, que sabia ocupada por um casal já
idoso, a sua sempre presente curiosidade levava-a a observar bem de perto toda
a vizinhança. E este casal era bem simpático e por isso eram sempre boas as
conversas que tinha com eles.
A senhora estava como
de costume a tratar do jardim em frente da casa o marido encontrava-se nas traseiras,
pois já tinha alguma dificuldade de locomoção, sentava-se durante horas a olhar
para os campos matando a saudade do tempo em que trabalhar a terra mais que um
modo de vida significava para ele uma forma amorosa de criar vida.
Ao reparar na sua presença
a senhora, Ana assim se chamava, cumprimentou-a:
- Olá Matilde, andas a
passear?- sem a deixar responder continuou- Gosto muito de te ver por aqui, é
tão bom que gente nova repare em nós, não queres entrar? Dar umas palavras ao
meu marido, ele era muito amigo da tua mãe, a Luísa, agora coitado passa a vida
parado a olhar para as terras abandonadas, talvez recordando o tempo em que
para ele elas não tinham segredos.
-Matilde acedeu ao
pedido, e foi ao encontro do idoso, que de olhar parado ausente nem sequer
notou a sua aproximação. Despertou apenas quando ouviu a esposa quase gritar.
- Está aqui a Matilde,
a filha da Luísa. – e virando-se para Matilde: -Ele ouve mal é preciso falar
alto. Estás a ouvir? É a filha da Luísa.
Ao voltar a ouvir o
nome Luísa o senhor João ficou alerta e murmurou:
- Olá Luísa, o nosso
passarinho continua a voar, eu sei vejo-o muitas vezes.
Matilde ficou confusa,
nada sabendo da conversa do senhor João, sabia que ele a estava a tratar pelo
nome da mãe. Ficou com pena e sem saber que dizer. A medo alinhavou algumas
palavras.
-O senhor João está
confundido, eu sou a Matilde a minha mãe é que se chama Luísa, a história do
passarinho já deve ter acontecido há muito tempo.
- Os olhos do idoso
encheram-se de brilho, endireitou-se com energia na cadeira, a sua face ganhou
cor, encarou Matilde de frente e com um tom de voz forte e emotivo pronunciou:
- Eu vivo em todo o
tempo, o tempo dos sonhos, aqui não há passado nem presente nem futuro apenas o
que eu vejo e sinto. O passarinho está vivo, porque Luísa, tu o ajudaste a
salvar.
Como se tivesse de uma
só vez descarregado toda a sua energia, voltou à sua posição inicial, não
pronunciando mais qualquer palavra.
Apesar de todas as
tentativas da esposa e de Matilde o senhor João continuou ausente. Matilde esteve
ainda algum tempo com o casal, como se aproximava a hora de jantar regressou a
casa.
Adormeceu a ouvir a voz
do idoso, aos seus ouvidos soavam as palavras:
- “ Eu vivo no tempo
dos sonhos.”
E rapidamente se sentiu
uma ave no céu, voava, voava. No entanto era uma ave muito peculiar, um
pintassilgo, por natureza uma ave de voo rasteiro, voava naquele momento a uma
altura que lhe permitia sobrevoar a neblina que cobria os campos, deleitava-se
no voo, fechava as asas e descia a elevada velocidade em direcção à neblina,
logo que se aproximava abria de novo as asas sofria um choque no corpo e o voo
travava abruptamente, voltando a elevar-se às alturas, o seu voo era como um
bailado que do solo não podia ser apreciado, devido à bruma, mas que era vivido
intensamente. Sentia que tinha nascido diferente do resto do seu bando,
solitária e sempre em busca de sensações que lhe estavam vedadas, pela sua
natureza de ave de voos rasteiros.
Voar alto e descer na
mais alucinante das velocidades, significava o prazer, a liberdade e a
felicidade absoluta.
A sedução de entrar na
neblina e sentir no corpo a sua frescura e a suavidade da seda, exerceria nela
um fascínio que a hipnotizava e a fazia esquecer os perigos que a neblina
escondia.
Numa descida mais
arrojada, inebriada pelo êxtase provocado pelo voo, esqueceu toda a prudência,
descendo à mais alta velocidade que conseguia. Cega pelo nevoeiro e pelo prazer
o seu corpo chocou contra um obstáculo, para ela imprevisível, caindo inanimada
no chão.
Naquela manhã de fim de
Inverno, junto ao seu pombal que ficava no fundo do jardim, o Sr. João ia
tratando das suas pombas, junto a ele a jovem Luísa observava curiosa, fazendo
uma multidão de perguntas que ele respondia pacientemente. O sr. João era um
homem maduro, casado com a Dona Ana, não tinham filhos e para ele a mulher, as
terras e as suas pombas eram tudo na sua vida. Luísa sabia disso, por isso
admirava-se que muitas vezes ele mantivesse as pombas fechadas no pombal, como
era o caso dessa manhã. Com a liberdade que a sua idade permitia perguntou-lhe.
-Sr. João, o sr. gosta
tanto das suas pombas e de todos os pássaros em geral, porque é que não as
deixa voar, como por certo elas gostariam?
- Sabes Luísa gosto
muito de pássaros e muito das minhas pombas, as minhas pombas são aves
domésticas e eu preciso de protege-las de alguns perigos, hoje está muito
nevoeiro o que representa um perigo para todas as aves, as que vivem na
natureza quase sempre se conseguem defender, mas as pombas não, se eu as
solta-se agora elas fariam um voo demorado mas ao regressar o mais certo era
desorientarem-se ou pior chocarem com algum dos muitos fios eléctricos ou
telefónicos que passam por aqui perto.
Quando o sr. João se
preparava para continuar a sua explicação, com um baque uma pequena ave vinda
do céu caiu aos pés de Luísa, que aflita pegou nela e sem conter uma lágrima,
meio chorosa disse:
- Está morta, sr. João
– não conseguindo conter o choro – Morreu sr. João!
O sr. João pegou na ave
com ternura, encostou-a à face, levantou levemente as suas penas, os dedos
acariciaram suavemente o seu corpo, entregou a ave a Luísa enquanto ia dizendo:
- Não, ainda está
quente, não está morta, está apenas atordoada, precisa de continuar com calor
aconchega-a bem a ti. É uma bela ave, um pintassilgo, ou melhor uma
pintassilga.
Luísa pegou na ave com
cuidado, instintivamente levantou a camisola que trazia e colocou a ave bem
junto do seu coração, ao ver isso o sr. João sorriu e as palavras saíram-lhe
com emoção:
- A ave viverá, vais
ver.
Durante longos minutos
o coração de Luísa palpitava na espera, enquanto o calor do seu corpo se
transmita à ave, as suas mãos aconchegavam a camisola com ternura e delicadeza,
começou a sentir um formigueiro no peito, ficou com os sentidos todos alerta,
virou-se para o Sr. João e gritou.
- Sr. João, sr. João, o
pássaro está a mexer-se, ele está vivo! – Continuou ofegante.
Cuidadosamente retirou
a ave do seio e viu como ela se tentava soltar, virou-se para o Sr. João:
- Que faço, que fazemos,
a esta ave tão bonita?
Este olhou para o céu,
notando que o sol já tinha rompido a bruma, e o dia se apresentava lindo e
claro, reparou num par de pintassilgos que soltavam um canto triste e aflito,
voltou o olhar para Luísa e para a ave, enquanto dizia com visível afecto na
voz:
- Solto-a Luísa, no
alto alguém espera por ela, fizeste o que tinhas a fazer, a tua bondade a
salvou.
No calor confortável da
cama Matilde mexia os braços de forma bem estranha, Luísa a mãe que entrou no
quarto para a despertar, tocou-lhe amorosamente no rosto, enquanto sussurrava:
- Que tens Matilde,
algum pesadelo? Sossega, eu estou aqui.
Matilde abriu os olhos
e entre espantada e sonhadora, murmurou para a mãe:
- Lembras-te daquela
ave que tu salvaste?
- Sim, lembro-me isso
vai há tanto tempo, porquê?
- Essa ave, um
pintassilgo, era eu.
Herminio
Herminio