A FABULOSA VIDA DE
MATILDE
A AMIZADE
Matilde estava só em casa,
sentada junto a uma mesa onde estava instalado um computador ligado à NET e
onde tentava matar o aborrecimento daqueles dias, os seus pensamentos passavam
com lentidão mas estranhamente abertos à novidade, queria um tempo diferente,
sentia enfado pelo tempo que vivia entediante e desinteressante, o dia quente
de Verão a modorra que ela sentia convidavam à inactividade. Subitamente, no
entanto, o som de passos no chão rasgando o silêncio da casa, colocaram-na em
estado e alerta, e sentiu algum medo, àquela hora não era normal alguém entrar
dentro de casa sem aviso, os passos continuaram, sem grande convicção gritou:
- Mãe, és tu? – o silêncio
manteve-se, voltou a falar- Quem está aí?
Não obtendo resposta,
Matilde apesar do medo cada vez mais intenso, levantou-se para tentar
identificar a origem dos passos, tentando dominar-se, ao mesmo tempo começava a
pensar em gritar sentindo no entanto a voz presa na garganta. A casa não era
grande em breve (?), fosse, quem quer que fosse, ou o que fosse, estaria junto
dela muito rapidamente. Os passos continuavam a ouvir-se, sempre à mesma
cadência e mesma altura, porém, era como se esse alguém estivesse a caminhar
sem se deslocar, ficou atenta, apurou os ouvidos, escutou com o máximo de
atenção e paradoxalmente com o mesmo ritmo e o mesmo volume o som parecia-lhe
vir de todos os lados da casa. Entrou em pânico, ficou paralisada não
conseguindo articular nenhum som e muito menos gritar. Tentou controlar a
respiração, durante uns segundos pensou no que fazer, repentinamente começou a
correr em direcção à porta, tropeçou num dos tapetes, desequilibrou-se,
bateu com a cabeça no canto de um móvel e caiu no chão, inanimada.
Um silêncio suave começou a
fazer-se sentir em toda a casa, o corpo de Matilde mantinha-se imóvel,
estendido no chão. O tempo passava e nada parecia mudar.
Numa observação mais cuidada
notava-se que Matilde começava a mexer-se, ao princípio
imperceptivalmente, finalmente os movimentos cada vez mais visíveis, mas
no seu rosto começou a notar-se apreensão e espanto, o local onde se encontrava
nada tinha a ver com a sua casa. Estava deitada num relvado bem tratado e à
sombra de uma frondosa árvore, a maciez da relva e os tons de cor provenientes
das mais variadas plantas visíveis à sua volta, conjugado com suaves e
agradáveis aromas trazidos por uma fresca brisa, fizeram-na pensar se não
estaria no paraíso, lentamente tentou levantar-se e notou que o podia fazer sem
grande esforço, já de pé notou que se sentia bem, no entanto uma pequena dor de
cabeça lembrou-lhe a queda, ao levar a mão ao ponto onde se acentuava a dor de
cabeça, constatou a existência de um hematoma, com uma dimensão que a assustou,
um grande galo, diria a sua mãe.
Apeteceu-lhe chorar, só, num
local desconhecido a que tinha ido parar de forma inexplicável, reuniu
toda a energia que foi capaz e gritou, num misto de pedido de socorro e de
choro incontrolável, um eco foi repetindo os seus apelos sem os resultados que
ela desesperadamente procurava. Sentou-se na relva e chorou convulsivamente.
Debruçada sobre o peito e com as mãos no rosto, deu largas ao seu medo e
desespero.
Entregue aos seus
sentimentos, não notou que mansamente alguém se ia aproximando, o macio tapete
da relva o tamanho e a estrutura física de quem se aproximava, facilitava essa
aproximação furtiva. Quem se aproximava não aparentava ter intenções agressivas,
o seu aspecto era uma mistura entre um duende e um ser humano, sendo impossível
de identificar com rigor, pois em cada instante parecia mudar de forma,
mantendo apenas a altura, as próprias cores e formas da roupa que trazia
vestida, variavam segundo o seu aspecto e tamanho, ora apresentava cores vivas
e variadas, como apresentava uma roupa e um aspecto em tudo semelhante a
Matilde.
Era impossível acompanhar e
compreender o que estava a acontecer.
Enquanto Matilde
continuava a dar largas ao seu desespero, essa forma hibrida e variável aproximou-se
e tocou levemente nas costas de Matilde, que perante a inesperada surpresa, deu
um salto brusco abriu a boca mas foi incapaz de articular qualquer som.
De pé notou que esse ser era
bem pequeno, mas incrivelmente parecido com ela, e com cadência regular
continuava a mudar de forma, mantendo sempre no entanto na face uma incrível
semelhança com ela.
O ar pacífico e cheio de
ternura com que os olhos a miravam, acalmaram-na e o medo esfumou-se do seu
espírito.
- Estou aqui, nunca estive
noutro sítio, porque vivo em ti. Ou melhor sou a medida da tua capacidade de
dares e conquistares amizade, sempre que confiares sem reservas em alguém, eu
crescerei que atingirei a plenitude e será máxima a minha dimensão, sinal de
que as tuas amizades merecem de ti a tua entrega total, estou aqui para te
alertar se porventura os teus caminhos ou decisões não forem as mais justas.
Mas para me ouvires tens que te escutar a ti. Não me vais encontrar nem te vais
encontrar a ti, se não olhares bem para dentro do teu ser. Se olhares muito de
perto verá apenas o exterior, descobrirás que quem vê de muito perto quase
sempre vê o incerto, fica pela aparência, e se traçar o seu caminho pela
aparência muitas vezes errará. Tenta olhar para o interior das coisas e de ti,
e descobrirás o mundo, em cada minúscula parte, do visível e do invisível, pois
em cada pequena parte está presente, todo o cosmos.
Ainda não te disse como me
chamo. Como vês, sou como que uma tua gémea, se quiseres chama-me de “A Gémea.”
Matilde deixou-se como que
embalar pelas palavras que ouvia, cuja origem pareciam vir de dentro de si
embora a presença dessa espécie de gémea, lhe lembra-se que não seria assim,
gradualmente foi serenando, endireitou o corpo totalmente o medo já tinha desaparecido
e uma intensa serenidade invadiu-a, Começou a pensar que vivia uma das suas
muitas fantasias, teria vergonha de gritar e chamar alguém, tinha a percepção
de que não corria perigo, cheia de coragem com voz tão calma quanto podia
disse:
- Mas afinal quem és tu? O
que faço aqui, que local é este?
- Começo pelo local, este é
o mundo da Medida da AMIZADE, em mim se reflete o valor das amizades que
conquistaste. Explicar-te-ei enquanto te mostrar todo este mundo. Perguntaste o
que fazes aqui: dentro de ti tens um coração aberto ao sonho e aberto à
partilha de amizade sincera, só quem tem esse espírito encontra a chave de
entrada neste mundo, e assim se abrirá a inteligência e o coração para
valorizar o que é importante valorizar, daqui não sairás outra, mas mais capaz
de traçares o teu próprio caminho, tomar-te-ão sempre como alguém diferente e
serás alvo de alguma incompreensão. Queres conhecer este mundo para
compreenderes quem te rodeia? Não conhecerás o futuro mas o retrato do presente.
E a tua ligação a múltiplos acontecimentos de múltiplas pessoas. Aceitas fazer
essa viagem?
- Que me acontecerá se
recusar essa proposta?
- Nada, ficarás para sempre
mais pobre e viverás na dúvida se essa decisão foi a certa. Nunca saberás a
medida da amizade que os teus amigos te oferecem, nem serás capaz de avaliar se
és justa para com essa amizade.
Matilde pensou uns segundos
e resoluta:
- Aceito, quando começamos?
- Começamos já, mas primeiro
vamos tratar da tua cabeça, colocar-te-ei este selo que é curativo e sempre que
até aqui viajares esse será o sinal, que tens o privilégio de viajar neste mundo,
para quem é capaz de dar amizade sem medida.
Estou em ti e sei que tens
muitos sonhos, sei que o mundo precisa dos teus sonhos, não te substituirei nem
nunca estarei presente para fazer por ti aquilo que tu podes e deves fazer
sozinha, mas enquanto tu quiseres apenas para te animar, ou melhor para saberes
que não estas só, eu estarei contigo. Em cada dia avaliaras se o teu caminho é
o certo, mas sempre escolhido por ti, e que está viagem, que tal como a luz faz
realçar as formas, venha a contribuir de alguma maneira para fazer brilhar em
ti, tudo aquilo que tu tens de bom. Nessa altura tu serás de facto a Matilde,
com sonhos não totalmente realizados, mas sempre em busca da tua realização
plena. E assim contribuirás para mudar o mundo.
- Como é que posso mudar o
mundo se vejo nele tanta maldade e traição, e se muitas das coisas que eu sinto,
não passam de hipocrisias e mentiras?
- É bom que muitas coisas de
mal sejam mentiras, é a prova que o mundo não está tão mau como parece, se todas
essas maldades fossem verdade, o mundo seria um inferno.
Iniciemos então a viagem,
será como flutuar através do tempo e não do espaço, em frente temos o futuro, o
que vês Matilde?
- Pessoas que eu conheço,
umas com nitidez, outras quase sombras e outras que eu nunca vi, mas bem
nítidas.
- Não verás mais do que isso
do futuro, pois o futuro é aquilo que tu construíres cada dia no presente. As
que vês com nitidez continuarão a fazer parte da tua vida, dependendo apenas de
ti. As que parecem sombras são as que se afastarão ou que tu afastarás, se
reparares notarás que entre estas, algumas estão em posição de quem se lamenta,
ou por se terem afastado de ti, ou por não terem conquistado verdadeiramente a
tua amizade. Os novos são aqueles que a vida te trará.
Viajaremos agora pelo tempo
presente, não precisamos de mudar de direcção mas apenas de estado de alma. Que
vês agora Matilde?
Matilde fixou o olhar num
espaço que lhe parecia caótico e simultaneamente harmonioso, diante dela muitos
grupos de pessoas, umas com olhar feliz outras de olhar triste, algumas bem
nítidas outras nem tanto, muitas de costas impossíveis de identificar, muitas
que eram sombras mas fixamente voltadas para ela, não as conseguia identificar,
e caso curioso quando o seu olhar se fixava nelas a sua Gémea, tornava-se mais
pequena e menos visível, quando porém se voltava para as que reconhecia
nitidamente a Gémea atingia a plenitude da sua estatura. Estranho ainda era o
que acontecia quando o seu olhar pousava nas pessoas com ar triste, e que ela
reconhecia muito bem, nem eram muitas, mas estavam entre elas alguns dos seus maiores
amigos. E neste caso a Gémea mantendo a mesma estatura e rosto parecido com o
seu, transformava-se num duende com olhar perdido e triste. Matilde voltou-se
para a Gémea observando-lhe:
- Não compreendo as diversas
formas que vejo à minha frente, nem as tuas transformações.
A Gémea fez uns segundos de
silêncio, e enquanto o seu corpo ia passando por múltiplas formas, fixou
longamente os olhos em Matilde, como se olha-se bem para dentro da sua mente e
perguntou:
- Queres mesmo que te
explique, mesmo que te cause alguma dor?
Matilde já não se sentia
capaz de recusar nada, estava disposta a aceitar tudo. E sem hesitação
respondeu.
- Sim, quero perceber se for
capaz, quero compreender aquilo que os meus olhos veem.
- Não são os teus olhos é o
teu espírito. O grupo das pessoas felizes, são os teus amigos a quem dás e
recebes amizade, o grupo das pessoas que estão de costas para ti, são as
pessoas com quem te cruzaste na vida, mas com as quais nunca o afecto e a
amizade aconteceu nem essas pessoas desejam, o grupo de pessoas que estão de
rosto fixo em ti, é o grupo de pessoas com quem te cruzaste te admiram e que
desejariam a tua amizade, mas tu nunca reparaste na sua existência. Finalmente
o grupo da pessoas tristes, são aquelas que te têm verdadeira amizade e que de
alguma maneira te feriram, e que precisam da tua amizade.
A Gémea acabou de falar, os
olhos de Matilde estavam ligeiramente humedecidos. Soprava uma doce e calma
brisa, ambas se mantiveram caladas. A Gémea colocou o seu braço nos ombros de
Matilde.
A calma presente em todo o
espaço, era propícia ao recolhimento, um sentimento de paz percorreu toda a
alma de Matilde, suavemente e pesando bem as palavras. Voltou os olhos para a
Gémea enquanto ia dizendo;
- Que valor tem a amizade,
que não é capaz de compreender e perdoar?
A Gémea como que atingida
por uma energia extraordinária, atingindo uma altura absolutamente descomunal,
provocando em Matilde um espanto que ela jamais tinha sentido. Ao longe uma voz
chegou com doçura a Matilde:
- É hora de regressares,
compreendes a Amizade, a Amizade que dás tem o tamanho da tua alma.
E uma mão como que vinda do espaço tocou-lhe
na cabeça e Matilde adormeceu.
A mãe ao chegar a casa achou
estranhou tanto silêncio, nem música no computador nem televisão ligada,
pensou:
- Decerto saiu. - Entrou com
cuidado dirigiu-se ao quarto onde Matilde costumava estar, e reparou que ela
tinha adormecido, sobre o teclado do computador, com cuidado e muita ternura,
aproximou-se dela e reparou num penso um pouco estranho que Matilde tinha na
testa, um pouco assustada acordou-a
- Então Matilde que se
passa? Que tens aí na cabeça?
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