segunda-feira, 27 de junho de 2016

A MOCHILA



A FABULOSA VIDA DE MATILDE
A MOCHILA 
Matilde cumpria o ritual do costume, dirigia-se para a paragem do autocarro que a levaria de volta a casa, ainda era muito cedo, entre o fim das aulas e o horário do autocarro o espaço temporal era muito, para ela o tempo sem ocupação era sempre muito, não era muito dada a ócios, mas a espera trazia algumas vantagens, normalmente aproveitava para anotações na tablet como uma espécie de diário onde ia escrevendo os acontecimentos do dia com alguma frequência. Ou então fazia uma ou outra chamada do telemóvel, quase sempre para alguém de quem tinha alguma saudade, apenas para ouvir a voz dessa ou dessas pessoas.
Ao chegar à paragem do autocarro localizada no limite de um pequeno jardim que em dias de bom tempo atraía algumas pessoas, que aproveitavam o fim de tarde para um passeio, Matilde sentou-se no banco colocou a mochila no chão pegou na garrafa de água bebeu um gole, respirou fundo e ficou indecisa entre marcar para as pessoas de quem tinha saudades, e as suas anotações. Decidiu-se pelas anotações das impressões do dia.
“Passamos o dia na faculdade - eu, a mochila, e a garrafa d'água. Como quase todos os dias, nos últimos anos da minha vida. Aos fins-de-semana, quando todos os meus amigos e todos os estudantes voltam a casa: para os namorados o descanso e almoços em família, a cidade ficará mais vazia, de caras conhecidas. Nos domingos as lojas terão mais clientes mas eu não saberei, ainda não passei aqui um Domingo, os cinemas talvez esgotem, mas isso não é da minha conta-- invariavelmente eu escolho esta paragem, pouco frequentada, uma vez que fica um pouco longe da faculdade, esta escolha permite-me a liberdade de registar estas minhas impressões, a paragem fica perto de um jardim. Já são alguns anos desta rotina, o tempo parece ter parado, o cenário é o mesmo: pais, mães, bebés e máquinas fotográficas, crianças encantadas com as árvores, desastradas entre as flores, espantando os pombos e admirando os patos que num pequeno lago se movimentam serenos. O jardim não tem o cheiro verde-escuro da pinha, nem caruma dourada no chão. Mas tem palmeiras bem altas, que rasgam o céu azul até onde o olhar alcança. É isso que me atrai neste espaço: a segurança de uma certa eternidade. Da minha posição de observadora, neste dia primaveril mas já bem quente, um quiosque é alvo de uma intensa procura, o motivo são os gelados a que as crianças não resistem e a que os pais desistiram de negar aos seus pedidos insistentes.
O quiosque dos gelados não fica longe do local onde me encontro, subitamente apetece-me saborear um de chocolate, afinal também mereço, por isso vou interromper aqui as minhas divagações.
Matilde desligou a tablet, levantou-se dirigiu-se com um passo muito rápido para o quiosque. Em fila estavam algumas pessoas que aguardavam pela sua vez, sabendo o preço do gelado da sua preferência preparou o dinheiro para evitar a demora dos trocos. Em frente ao quiosque algumas mesas serviam de pequena esplanada com uma televisão para a qual as pessoas olhavam distraidamente. O atendimento estava demorado, como de costume as crianças estavam sempre indecisas na sua escolha e os pais ferviam de impaciência, preocupada Matilde tentava perceber o tempo que ainda demoraria a ser atendida, em rodapé na televisão passava uma noticia, infelizmente demasiado comum neste tempo, a Polícia de uma localidade que não conseguiu identificar, tinha sido chamada por causa de uma mochila abandonada e que levantou suspeitas, acrescentando que a mochila parecia libertar algum tipo de gás, aparentemente inócuo para as pessoas, ou pelo menos sem consequências graves, mas já tinha causado a morte pelo menos a algumas aves, aconselhavam ainda às pessoas utilizarem mascaras protectoras para a respiração, ou perante casos de dúvida colocarem no nariz pelo menos um lenço molhado como filtro de respiração. Ao ver essa notícia notou que se tinha esquecido da sua mochila na paragem do autocarro, aflita saiu da fila e dirigiu-se para lá a correr. Ao chegar à paragem notou que as poucas pessoas que lá se encontravam tinham o nariz protegido com um lenço e olhavam de forma estranha para a mochila que junto à qual se encontrava um pássaro morto.
Alguém lhe tocou no ombro como que alertando:
 -Tenha cuidado a televisão tem alertado que estão a espalhar mochilas com gás venenoso e que um dos sinais são pássaros mortos. Pelo sim pelo não coloque um lenço no nariz.
Matilde sem coragem de dizer que a mochila era dela e que não tinha gás nenhum, foi-se afastando cautelosamente sem saber o que fazer. Enquanto se afastava atarantada começaram a fazer-se ouvir sirenes da polícia a sinalizar urgência.
Subitamente sentiu um braço sobre os seus ombros, uma sensação estranha não física, mas como se tivesse sido envolvida por uma maciez de pluma, leve e amorosa um aconchego que lhe sossegava a alma, enquanto uma voz carinhosamente lhe dizia:
- Não te preocupes Matilde, como sempre te prometi eu estarei contigo sempre que alguma preocupação te assalte. Hoje é o dia, estou aqui para te ajudar.
Os seus olhos abriram-se de espanto a pessoa estava envolta num misto de neblina e aura, a sua voz era-lhe claramente familiar o desenho ténue do seu rosto também, mas era incapaz de dizer alguma coisa e muito menos de pronunciar o seu nome.
- Estás espantada? Vamo-nos retirar calmamente deste local. Deixar as coisas acalmar, nada vai acontecer, vais ver.
-Tenho medo, vi as notícias e junto à minha mochila está um pássaro morto. Quero fugir daqui para longe, tenho muito medo. Como vieste até aqui? Porque não sou capaz de te ver? Porque te vejo de forma difusa como num sonho?
- Quem sabe se eu estou aqui entre o sonho e a realidade, mesmo que seja sonho para ti é realidade, se for realidade estar contigo considera uma bênção, se for sonho preciso de estar aqui para te libertar das angústias do que para ti é um pesadelo. Não sou eu o teu protector?
-Claro que és, não me perguntes a razão, mas tenho medo de ir buscar a mochila com esta gente toda, e com o pássaro ali, mas sei que para ir buscar a mochila preciso de ir a Santiago de Compostela, preciso que vás comigo até lá?
-Não te preocupes a felicidade consiste em estar e não em ser, estar no caminho certo, estar no coração de quem amamos, estar com o coração de quem amamos, não importa a distância, tomaremos o transporte para Santiago, um transporte com um dom especial desloca-se no tempo e não no espaço. A nossa viagem será uma viagem em espírito. Tens que confiar em mim e envolver-me num abraço. Só um abraço de amizade nos transporta onde desejamos estar. Cumpriremos todos os teus sonhos, e todos os rituais que o teu espírito pede.
- Leva-me daqui Amigo, deixa-me abraçar-te, abraça-me. 
 Matilde anichou-se nos braços do seu Amigo, que a cobriu com os seus braços, fechou os olhos sentiu que era conduzida como uma cega, enquanto o Amigo se lhe dizia:
-Mantem os olhos fechados e o espírito aberto, eu te conduzirei, pelos caminhos, que te devolverão à luz e à tua paz.
Matilde sentiu que se movimentava, mas era uma movimento de uma forma estranha mais do que a deslocação do corpo era o espírito que pairava, e num tempo sem tempo estava em Santiago de Compostela, cumpriu todas as tradições, o Amigo não estava visivelmente presente, mas sentia o seu abraço e a sua protecção.
Subitamente sentiu-se transportada de volta, não na paragem do autocarro, mas no seu quarto, não compreendia o que se tinha passado, também não compreendia a inesperada presença do seu Amigo para a confortar, ainda compreendia menos a sua súbita chegada a casa, não sabendo o que tinha acontecido à mochila e ao pássaro.
Sentindo ainda o conforto do abraço do Amigo puxou um pouco a roupa da cama ao corpo, pois apesar da temperatura amena sentia o fresco da manhã.
Tentado libertar-se das preocupações ia saboreando esses momentos, quando ouviu a voz da mãe:
- Matilde que ideia foi essa de pegares no meu porta-chaves de casa, e o pendurares na tua mochila?
- Que porta-chaves mãe?
- O que tem a forma de um pássaro. A mochila está na sala não te esqueças de deixar o porta-chaves.
- Não, não me esqueço não, mãe… Eu deixo. 
Matilde respirou fundo começou a levantar-se enquanto se ia lembrando do Amigo. Pensando que era bem certo "que quem encontra um amigo encontra um tesouro".


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