sexta-feira, 30 de setembro de 2016

A PASSAGEM



A PASSAGEM

Era Novembro e chovia, chovia intensamente.
Como de costume nas últimas semanas o Domingo era dedicado a visitar os pais, no apartamento onde vivia localizado numa urbanização incaracterística nos limites da cidade, mais pensado em arrumar pessoas do que em acolher famílias, não se via ninguém na rua.
No carro sentou-se cansada ao lado do marido, um cansaço mais mental que físico que a impregnava intensamente um sufoco de que não se conseguia libertar.
Atrás, o filho mais novo bem preso à cadeira visivelmente incomodado pela liberdade do irmão, protestava sem parar.
Encostou-se no banco e fechou os olhos, o marido virou cabeça e perguntou:
- Estás cansada?
Acenou com a cabeça que não, enquanto pelo espírito passaram as últimas semanas, uma em especial
Naquele dia a mãe começara a falar, tão estranhamente que não esperava nem respostas nem reacções embora se lhe dirigisse, pois os olhos estavam fixos nela, sentia que não a chegava a ouvir nas suas respostas.
Num recomeço a mãe recostou-se no espaldar da sua cadeira, enquanto tinha falado as costas um pouco separadas do encosto, como quando alguém intervém publicamente numa tertúlia, ou numa orquestra um instrumentista antes de chegar a sua vez se ergue levemente na sua cadeira, atento tenso para não se perder da harmonia, descansando as costas na sua nova posição para a surpreender com o volume o tom e a teia de preocupações insuspeitas até então. Recomeçou:
- Não fui capaz de vos educar, nem a ti nem aos teus irmãos, não fiz a passagem do que aprendi da minha mãe, nada vale tudo o que sabes se não entenderes a linguagem da natureza, a linguagem da terra.
As suas mãos desenhavam no espaço o gesto de quem rasgava a terra, um estranho bailado vindo de tempos ancestrais, as palavras saiam como se fossem definitivas as últimas as essenciais, havia urgência na sua voz.
Nesse dia não tinha compreendido, mas o pai já a alertara: 
-A tua mãe anda um pouco esquecida, a médica de família marcou uma consulta para um neurologista.
O médico chamou-a: 
-É a filha mais velha?
 - Sim; respondeu
O médico ensaiou uma explicação com cuidado, tentando não a magoar, muito calmamente foi dizendo:
- A situação da sua mãe é complicada e vai requerer muita atenção compreensão e sacrifício de todos…..
O médico continuava a falar mas ela já não o ouvia, começou a lembrar-se de pequenas coisas, pequenos esquecimentos, situações que ao início achava graça, meter as caixas de fósforos no frigorífico, o peixe congelado na despensa, coisas com que a mãe invariavelmente se desculpava:
-O teu pai não faz nada, é tudo para mim, que às vezes nem sequer sei onde tenho a minha cabeça, quando tinha a tua idade…
Custava-lhe a compreender, mas gradualmente, tudo ia ficando cada vez mais claro.
O barulho das escovas do limpa brisas, martelava-lhe a cabeça, e esse ruído se a incomodava ao mesmo tempo a monotonia do som provocava nela uma espécie de entorpecimento que favorecia, como se estivesse a assistir a um filme, à visualização dos últimos tempos da vida da sua mãe.
 Uma mulher activa agarrada à vida e com uma saúde de ferro, insidiosamente e como se tivesse sido invadido lentamente por uma cortina negra, o seu cérebro, começou a dar mostras de falhar.
- Idade – pensava ela
-Idade- Diziam todos
A viagem continuava apesar de a distância ser relativamente curta, naquela momento para ela parecia não ter fim. Continuava de olhos fechados, sentiu o carro parar e ouviu o marido dizer:
- Chegamos.
Era Novembro e chovia, chovia abundantemente.
Lá fora a mãe com um regador, junto ao muro da casa ia regando as pedras, com a aplicação de sempre.
Compreendeu então a urgência das palavras daquele dia, a mãe antes de fazer a passagem para um mundo só dela, sentiu necessidade de lhe passar o testemunho acumulado nos tempos.
Não se conteve e chorou, chorou copiosamente, juntando as suas lágrimas às gotas de água da chuva.



                                                         Herminio

sexta-feira, 2 de setembro de 2016

CASAMENTO PERFEITO ..





CASAMENTO PERFEITO
Aquele era um casamento muito singular, para quem conhecia os noivos diria que seria quase impossível aquela combinação. No entanto ali estavam eles, a noiva com um vestido verde, que logo na primeira aparição tinha causado um forte impacto entre os convidados e mesmo no padre que celebrou a cerimónia, pelo inusitado da cor, enquanto o noivo vestia um clássico fato. 
Mas era bem visível a genuína felicidade que transmitiam, todos os amigos e convidados ignoravam, por entre tanta diferença qual o íman que tinha motivado aquela decisão aparentemente tão apressada, em menos de dois meses, conheceram-se e decidiram casar.
Octávio, para quem o observava, era uma pessoa muito formal, notava-se não só na forma de vestir mas também no relacionamento com quem o rodeava. Exercia as suas funções como Gestor numa empresa de Segurança e Transporte de Valores, com profissionalismo e competência. A Administração tinha plena confiança em Octávio.
Havia apenas um pequeno problema, o seu vício que lhe limitava o contacto directo com os clientes.
Nos corredores da Empresa toda a gente falava em surdida, comentando como era possível que uma pessoa com tão bom caracter e de comportamento exemplar, se deixasse dominar tão fortemente.
O que é certo, é que o problema começou relativamente cedo, filho único de uma família de classe média, os pais notaram a sua obsessão bem cedo.
As consultas de psicologia e mesmo de psiquiatria, grupos de auto- ajuda não tiveram os resultados esperados.
Nos momentos de privação, o seu estado atingia pontos de verdadeiro drama, acontecendo em qualquer lugar ou situação.
Em casa fechava-se no quarto e os pais já derrotados, esperavam que a crise passasse, tinham já esgotado todos os meios e perdido a esperança de mudança.
No emprego, um dos Administradores testemunhou a intensidade de um momento de crise, com espanto e perplexidade.
Octávio levantou-se, tirou o casaco alivou o nó da gravata deitou as mãos ao peito, súbitos suores lhe correram pelo rosto, imenso vermelhão lhe cobriu o corpo todo, todo ele arfava, ouvia-se o bater do coração, já nada contava, via-se que precisava urgentemente, de satisfazer essa necessidade que o atormentava, o Administrador olhava-o pasmado, nunca a tal tinha assistido, tentou acalma-lo, mas Octávio como um relâmpago e sem palavras correu para os lavabos trancando-se dentro, quando regressou desgrenhado e a tentar compor-se parecia mais calmo, envergonhado pediu timidamente desculpa.
Inicialmente a Empresa colocou a hipótese de despedimento, por incompatibilidade entre o comportamento e as funções. Mas avaliando as qualidades profissionais de Octávio, apesar desse problema, foi encontrada a solução em que não teria nunca contacto com os clientes, mas continuaria a exercer as funções numa sala onde estaria só e com acesso directo a uma casa de banho.
Octávio continuava a viver na casa dos pais, com 35 anos não se lhe conheciam grandes amizades e as suas saídas ao fim de semana era para fingir perante os pais que tinha amigos, normalmente jantava fora e ia à última sessão de cinema.
Jantava quase sempre no mesmo restaurante, pela calma que o movimento moderado lhe garantia, escolhia uma mesa discreta que lhe permitia observar todo o estabelecimento e acessibilidade fácil aos lavabos.
Num sábado e contra o habitual o Restaurante estava com movimento inusitado, a mesa que sozinho ocupava era pequena e permitia apenas dois clientes, nunca seria incomodado pelo grupo de pessoas que se encontrava à espera. Por isso sem grande preocupação esperava que o empregado confirmasse o habitual prego no prato.
Inopinadamente ELA entrou com uma exuberância incomum, deitou um olhar à sala, cumprimentou efusivamente um empregado, dirigiu-se resolutamente para a mesa onde estava Octávio e ao mesmo tempo quer se sentava ia dizendo.
- Dá licença que me sente ao seu lado?
Octávio entre espantado e deslumbrado, sem tempo nem condições para recusar, acenou que sim. Enquanto ela ia dizendo.
- Venho aqui muitas vezes, gosto deste sitio.
 - Venho cá todos os sábados e nunca a vi. – Ia ele pensando mas sem abrir a boca.
- Mas aos sábados nunca cá venho, hoje não tinha compromisso.
- Sendo assim … - Pensou
Iniciou-se um tempo de silêncio, em que discretamente se iam observando, melhor ele discretamente ela sem qualquer constrangimento.
Octávio reparou que ela tinha as unhas da mão um pouco maltratadas e fixou-as demoradamente, tempo de mais, ela notou esse interesse.
- Sabe, não consigo resistir, mordo as unhas compulsivamente.
E sem se deter nas palavras continuou.
- Já que vamos jantar juntos, e hoje esta demorado, eu sou a Liliana e você como se chama?
- Octávio - respondeu timidamente e ainda sem conseguir disfarçar o deslumbre.
Felizmente antes de sair tinha-se fechado no quarto e dado asas às suas necessidades, tinha a certeza de que não teria, pelo menos tão cedo, nenhum ataque de ansiedade que o levasse a sair.
Por outro lado Liliana era bem desinibida o que impediu tempos de silêncio confrangedores.
- Que vai jantar? – Perguntou acrescentado - O arroz de Pato cá é delicioso.
- Acho que vou escolher isso- Respondeu Octávio não sabendo ainda como reagir, mas tendo o cuidado de fazer sinal ao empregado, enquanto dava uma falsa olhadela ao Menu.
O jantar correu bem, a conversa atingiu fluidez, Octávio contagiado por Liliana desinibiu-se, soube que Liliana era Relações Públicas numa Empresa de Transportes Aéreos, acabaram por ir juntos ao cinema, no local bem perto do Restaurante por isso foram a pé, aproveitando para conversar e se conhecerem, Liliana riu-se quando Octávio disse que ainda vivia com os pais, e riu-se mais ainda quando ele disse que como já era um pouco tarde, tinha que lhes telefonar, a dizer que ia mais tarde que o costume. Ela vivia só, num T1 bem perto do Centro da cidade, e bem próximo do local onde se encontravam. No fim do filme a noite estava agradável, convidava a um passeio pela larga avenida, a companhia parecia agradar aos dois, naturalmente continuaram juntos em conversa com registo mais suave e intimista.
- Queres tomar um café? - Sugeriu Liliana
-Pode ser- Respondeu Octávio.- Mas a esta hora não vai ser fácil de encontrar café aberto.
- Claro que vai fácil, moro a menos de cinco minutos, tomamos em minha casa.
As coisas levavam um caminho a que Octávio já não estava habituado, o seu problema acabaria por ser visível começou a ficar tenso, desejava prosseguir mas tinha de facto muito receio. No entanto resolveu arriscar, não seria a primeira situação desoladora na sua vida, até estava habituado de mais.
O apartamento em que Liliana vivia localizava-se num terceiro andar numa zona bem aprazível embora de construção não era recente, disponha de elevador.
No elevador Octávio ficou ainda mais tenso, Liliana reparou mas ignorou.
No hall de entrada havia um bengaleiro, Liliana sugeriu-lhe para colocar lá o casaco, aproveitou tirou a gravata, sentiu-se momentaneamente mais desafogado. O apartamento tinha um ar condizente com Liliana, expansivo e a convidar à descontração, na sala relativamente pequena, um móvel com algumas prateleiras com CDs, livros e um pequeno bar, havia outro com aparelhagem de música e uma TV. Finalmente um único sofá para duas pessoas um puf e uma pequena mesa de apoio.
- Vou preparar o café, serve-te do uísque, trago já gelo.
Octávio ficou só a pensar naquela improvável situação, ignorava o que ia acontecer mas sabia que não ia aguentar mais tempo a ansiedade que o tomava. Dois desejos o percorriam, aquele que tornava a sua vida num inferno, mas lhe apaziguava o espirito, e o de viver com Liliana uma noite de amor.
Liliana chegou, com o café e o gelo. Tinha trocado de roupa, trazia vestido uma leve túnica, ela estava mais sensual.
Liliana puxou o puf, para junto do sofá, sentou-se ao lado dele, sacudiu o calçado dos pés, colocou os pés no puf, a túnica subiu-lhe ligeiramente nas pernas, sem que ela fizesse nada para o evitar, confortável com a situação. A visão daqueles pés toldou o raciocínio de Octávio, um pés lindo e umas unhas que o fascinavam, não resistiu, levantou-se bruscamente ajoelhou ao pés de Liliana e começou a beija-los, sôfrega e ardentemente. Esqueceu-se de tudo, dos seus medos e da possibilidade de mais uma vez tudo terminar mal. Um som difuso chegou aos seus ouvidos parecia-lhe uma queixa, um gemido, por um segundo hesitou, mas aos ouvidos um sussurro chegava:
- Não pares, continua não pares…
Continuou os seus dentes acariciavam as unhas com paixão, cedo descobriu que debaixo da túnica apenas um corpo nu. ……….
Acordou junto a ela, ambos ainda nus, já era bem tarde pela persiana os raios de  sol irradiavam. Os lenções mais os descobriam que tapavam, percorreu com o olhar todo o seu corpo, nos pés algumas unhas totalmente ruidas ao limite, sentiu medo como reagiria ela? Lentamente ela despertou, olhou nos olhos, com uma imensa paixão e sem que ele espera-se.
- Queres casar comigo?
 Delirou, soube que ela era a mulher que sempre desejava, tinha a certeza que ela o aceitava tal e qual era, que naquele momento o poder que a atração das unhas exerciam sobre ele, não seriam um impedimento a uma relação, não teria mais que praticar uma espécie de onanismo, mordendo as unhas dos seus próprios pés, por isso gritou
-SIM .
Sentido os dentes dela a morder-lhe as unhas das mãos, sorriu, sabia que a ONICOFAGIA seria vivida a dois..



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