A FABULOSA VIDA DE MATILDE
O HOMEM QUE APRENDEU A
LER VERSOS
Matilde encontrava-se,
contra sua vontade e arrastada pela mãe, num consultório de um velho médico,
sobre quem se constava, que sabia ler sonhos, sendo também capaz de curar quem
deles padecia. Matilde bem tentou resistir, pois vivia bem com o seu sonhar,
sentia-se bem a navegar nesses mares estranhos. Mas agora estava com a mãe no
consultório, reparou que por detrás de um pequeno balcão se encontrava uma
empregada, já com alguma idade e com um rosto seco e duro, via-se que não era
uma pessoa feliz.
Tinham chegado bem
cedo, o sono e o tédio ou o tédio e o sono apoderaram-se dela, recostou-se no
espaldar da cadeira fechou os olhos. E manteve-se em silêncio, durante um tempo
que lhe pareceu bem longo, sentiu um ritmo cadenciado de passos no piso do
consultório, mas nem assim abriu os olhos. Uma mão bateu-lhe no ombro, enquanto
lhe soava uma voz aos ouvidos:
- A menina é que é a Matilde?
Abriu os olhos,
reparou espantada numa negra bem gorda, idosa e sorridente, que repetiu:
- A menina é a
Matilde?
Ficou atarantada,
olhou para o lado procurando o amparo da mãe, reparou que a mãe não se
encontrava a seu lado, não compreendeu porque é que a mãe tinha saído sem lhe
dizer nada. Gaguejando com a atrapalhação foi dizendo:
- Sim sou a Matilde, a
minha mãe deve estar a chegar. - Tomou fôlego e acrescentou de seguida: - Mas a
senhora não estava aqui há pouco, a senhora não trabalha aqui.
- Menina, eu moro no
sítio dos sonhos, vivo em todo o lado onde ainda se sonha. A Menina sonha, por
isso vivo em si. Além disso o meu Menino ajuda o senhor doutor, o meu Menino
escreve sonhos. - Depois tomando ares de funcionária- Tenho que fazer umas
perguntas antes do Sr. Doutor.
A negra foi
perguntando, reperguntado, Matilde foi respondendo com paciência, e com a esperança
que entretanto a mãe chegasse, aflita pela demora da mãe, e intrigada porque a
negra nada apontava, encheu-se de coragem e atirou.
- A senhora perguntou
tantas coisas e não apontou nada?
- Mas eu não sei
escrever em papel, escrevo na alma, agora o Sr. Doutor já tem tudo que precisa
saber. -
Respondeu a negra.
Matilde pasmou com a
resposta e a mãe sem chegar, ora ela também não era nenhuma criança, iria
sozinha à consulta.
A negra dirigiu-se à
porta do gabinete médico e disse bem alto:
- Doutor a menina está
pronta! - depois virando-se para Matilde - Pode entrar.
Resoluta, Matilde
entrou no gabinete do médico, que como lhe tinham dito era já bastante velho e
parecia entretido a ler uns cadernos com ar envelhecido e numa letra bem
bonita, muito mais bonita do que a dela. Ao entrar balbuciou:
- Boa tarde.
O médico levantou
lentamente a cabeça, observou-a, sorriu levemente, e com um tom de voz suave e
cheio de ternura:
- Bem-vinda Matilde,
sei o que te traz aqui: sabes sonhar, eu também desde que aprendi a ler versos.
Aprendi a ler com este menino há muitos anos.
A sua mão direita
estendeu-se, como a apontar para alguém, que para Matilde não era visível,
embora sentisse a aura de uma presença misteriosa. O médico estendendo a mão
esquerda continuou:
- Antes de aprender a
ler versos eu era como esta savana, em plena época seca.
Aos olhos de Matilde
apareceu de repente um imenso espaço árido e desértico com raros e espaçados
arbustos secos. O médico voltou a estender a mão direita e continuou:
- Os versos deste
menino, foram como gotas de água fresca na minha vida, mudando-a e tornando-a
assim.
Perante o espanto de
Matilde onde antes estava um deserto apareceu um imenso espaço verdejante e
aprazível. O médico não se deteve, voltando à palavra:
- Ele ensinou-me que
na vida existem estantes e canteiros, nas estantes estão as letras, sílabas e
palavras, nos canteiros sentimentos e emoções. É com isso que se fabricam
sonhos e versos.
Respirou um pouco e
recomeçou:
- Quando o Menino
descobre um canteiro novo, vai em busca de novas palavras, buscando letra a
letra como quem reconstrói uma rosa, pétala a pétala, para fazer um verso vai
dentro da sua alma à estante das palavras, escolhendo-as como florista escolhe
flores, dando-lhes harmonia e vida. Foi assim que eu aprendi a ler versos. Pela
alma deste menino. E sei que tu me compreendes, pois se estás aqui é porque
descobriste o mundo dos sonhos.
Voltando a estender a
mão direita indicando a não presença de alguém, nessa sensível ausência, Matilde
vislumbrou alguém debruçado a escrever num caderno semelhante ao que o médico
folheava.
Subitamente, com uma
energia inaudita, o médico levantou-se abriu os braços e apontando uma para
cada lado gritou:
Matilde ficou como que
magnetizada, os seus olhos olhavam para a esquerda e para a direita, o espaço
do consultório era infinito, de um lado uma imensa fila de estantes de altura
até ao firmamento e o comprimento a perder de vista, do outro numa planície que
se estendia para lá do horizonte milhares e milhares de canteiros com mil formas
e cores.
Atarantada, percorrida
por um impulso irracional incapaz de deter, levantou-se olhou de frente o
médico abriu os braços e gritou.
- CANTEIROS ESTANTES,
CANTEIROS ESTANTES.
Todo o seu ser, pertencia àquele mundo mágico
dos sonhos e dos versos, o seu mundo.
No seu espírito o
espanto instalava-se, extravasava tudo o que até então tinha vivido, muda e sem
palavras, tinha perdido a capacidade de reagir, mas lentamente uma pergunta lhe
tomou os pensamentos: - Como é que seria a reação da mãe? - Como respondendo
aos seus pensamentos ouviu a voz da mãe e sentiu um forte puxão num braço.
- Matilde que estas
para aí a dizer? Que se passa contigo?
Embasbacada, aturdida
abriu bem os olhos, a mesma empregada magra e mal-encarada, a mãe de pé ao seu lado
agarrada ao seu braço, e ela sem saber que dizer. Salvou-a a voz estridente e esganiçada
da empregada que guinchou:
- Menina Matilde ao
consultório.
A mãe impaciente e
nervosa, arrastou-a para o gabinete do médico.
- Que se passou? –
pensou- Será que sonhei outra vez?
Entrou no consultório,
o mesmo velho médico a ler o mesmo caderno amarelecido, que levantou os olhos
da mesma forma, e perante o espanto da mãe, ergueu-se da cadeira abriu os
braços e gritou:
- CANTEIROS ESTANTES,
CANTEIROS ESTANTES.