quinta-feira, 17 de novembro de 2016

O ENCONTRO



                                        
                                          O ENCONTRO

Ao entrar na rua, que conhecia mal e que lhe pareceu decrepita e pouco recomendável, tentou localizar o café cuja morada tinha recebido em mensagem no telemóvel. Para ela era uma aventura e sentia-se a um tempo desconfortável e decidida. Nunca nos seus mais de vinte anos de casada tinha ultrapassado esta linha de comportamento, que se convencionava ser normal e exigido a uma mulher casada, mas estava decidida e levaria a situação até às últimas consequências. A sua vida precisava de uma quebra de rotina, um pisar do risco a que tinha sido muitas vezes tentada mas só agora estava decidida a assumir.
Perto dos cinquenta anos, mantinha a linha e a frescura de alguém que se cuidava, cabelo escuro e bem tratado, como prova de que nada era deixado ao acaso, apesar da situação do momento um sorriso aflorava-lhe nos lábios, um lábios bem desenhados, pintados de forma discreta dando-lhe um ar subtilmente sensual, um olhar suave em que se notava um certo cansaço, no entanto sabia-se atraente e todo o porte afirmava isso.
Estranhamente vestia fora de moda e ao lembrar-se da razão, não deixou de voltar a sorrir, a insistência dele em que ela levasse uma roupa semelhante à sua mãe parecia-lhe estranha e despropositada,  pensou que se era para passar despercebida o efeito era exactamente o contrário. Depois de estacionar o carro, enquanto caminhava para o endereço combinado, sentia que muitas pessoas a miravam com algum espanto pela forma que vestia.
Mesmo assim resolveu aceitar, sentia-se elegante e com uma desenvoltura que não se imaginava capaz.  
Discretamente atenta ao numero da porta, foi caminhando ao logo da rua, o numero correspondia a um café mal identificado, e o nome quase invisível parecia-lhe estranhamente insólito “ 4ª Dimensão”, a porta encontrava-se semifechada e junto encontrava-se um cão bem tratado, de raça que ela não conseguiu identificar, não era muito entendida em animais, nunca se sentiu especialmente atraída para eles, o cão encontrava-se aparentemente a dormitar, com uma coleira onde tinha escrito, “Blind” provavelmente o seu nome. Com alguma cautela contornou-o, o animal nem pareceu nem dar pela sua presença.
Empurrou a porta e no limiar o telemóvel tocou, nesse momento parou, hesitou, rodou ligeiramente o corpo, ficando de perfil para quem a olhasse de dentro do estabelecimento.
Olhou para o visor do telemóvel, era ele. Atendeu a chamada e suavemente a voz dele disse-lhe:
- Estás no local certo, podes entrar.
- Porque ligaste?- Perguntou, mas já nada ouviu o telemóvel desligou-se
Pela primeira vez vacilou, a chamada tão abruptamente terminada e o local, deixaram-na constrangida e perplexa. Ainda no limiar da porta, parou um pouco na posição de perfil e lentamente voltou-se para dentro do café, os seus olhos percorreram o estabelecimento, todo o cenário a transportou-a a meados do século passado. No seu lado direito um longo balcão em madeira, tal como todo o outro mobiliário, acompanhava o comprimento de todo o espaço do estabelecimento, na zona do balcão, um móvel com prateleiras quase vazias, apenas com algumas garrafas de bebidas espirituosas. Pouco iluminado o estabelecimento permanecia numa penumbra simultaneamente assustadora e atractiva.  
A uma mesa, logo no início do estabelecimento, de olhos fixos num jornal, apesar da Televisão ligada, um homem que tinha o aspecto de ter bem mais de setenta anos, parecia alheio ao que se passava à sua volta, a presença dela não lhe provocou qualquer alteração de atitude, estava a ler o jornal e nem a cabeça levantou. Ele encontrava-se ao fundo, de óculos escuros, vestia um casaco castanho não usava gravata mas um laço, e era tudo o que conseguia ver. Na mesa que se encontrava absolutamente vazia, ele mirava fixamente, resoluta caminhou em passos decididos.
Quando ensaiava uma saudação com um beijo na face, ele tirou as luvas pegou-lhe cerimoniosamente na mão e beijou-a com uma terna delicadeza, oferecendo-lhe a cadeira do seu lado direito. Reparou que a cadeira de frente se encontrava ocupada com o que lhe pareceu um computador, encostado ao qual se via uma bonita bengala branca, na cadeira do lado esquerdo repousava uma pasta.
Sentou-se na cadeira vaga, enquanto ele voltando a pegar-lhe na mão sussurrou, com ternura.
- Obrigado por ter vindo, o meu coração rejubila de alegria pela sua presença..
-Não percebo, porque me tratas com tanta cerimónia?- Interpelou um pouco agressiva.
-Observei-a quando entrou naquela porta. – Continuou, ignorando as observações que ela fez. - O contraste entre a luz solar e esta penumbra, delineou o seu corpo com uma beleza ímpar, ao ligar-lhe sabia que instintivamente se viraria, assim também a observei de perfil, a luz solar ao penetrar pelos seus cabelos soltos deram-lhe uma imagem com um encanto e sedução absolutos.
Sentiu-se lisonjeada com as palavras que lhe pareciam em desuso, mas pronunciadas numa voz terna e suave, ela ficou hesitante com a voz em tom intimista, e um pouco intimidada sussurrou:
- Porque escolheste este sítio? Afinal é um local público, não me sinto confortável, a presença de outras pessoas, incomoda-me e condiciona-me.
- Pode ficar à vontade- continuou ele na mesma linguagem- O empregado ouve muito mal, e este café é pouco frequentado a esta hora, além disso combinei com ele, que com a sua chegada ele se retiraria. E já se retirou.. se quiser reparar..
Perplexa notou que de facto isso tinha acontecido. A pessoa que se encontrava na mesa logo à entrada, já não se encontrava presente.
-Estamos sós - Continuou enquanto se inclinava para ela com suavidade, fazendo o coração bater e sentindo o rosto ruborescer – É mesmo muito bonita, gosto da sua boca tem beleza e sensualidade, do tom e alegria da sua voz, também admiro a sua atitude firme, com carácter. Entretanto se me permite deixe-me conduzi-la para um recanto onde descobriremos os caminhos que este encontro desbravará, e que nos levarão a um tempo diferente e feliz. E não se preocupe este tempo e este espaço é apenas nosso. 
Levantou-se, pegou-lhe suavemente na mão, ajudando-a a levantar-se e em silêncio quase religioso, por um estreito corredor caminharam em direcção às traseiras do estabelecimento. Poucos metros depois, à sua esquerda ele abriu uma porta, estupefacta os olhos dela espraiam-se pelo espaço, estava em presença de um quarto bem amplo e confortavelmente mobilado; Uma cama semi-aberta, dois sofás, um mesa baixa, em cima da qual estava um ramo de rosas, uma garrafa de champanhe e dois cálices. Conduziu-a para um dos sofás e sentou-se no outro.
O coração começou-lhe a bater com violência, tinha chegado o momento da consumação da sua aventura, sentiu-se ruborescer, e foi incapaz de articular nem palavras nem resistência.
Ele fixou o seu rosto no dela, parecendo incapaz de mostrar qualquer emoção, pelo menos os óculos escuros impediam que ela conseguisse perceber o que ele sentia.
- Não se preocupe faremos acontecer o amor a felicidade e o nosso mundo, num tempo sem pressas.      
Enquanto ele com cuidado extremo ia abrindo a garrafa, como se a tacteasse com a  garrafa na mão num ritual quase religioso, tomou os cálices verteu neles um pouco de champanhe, oferecendo-lhe um , e tomando para si o outro. Levantou o seu.
-Brindemos ao futuro que o passado para onde viajaremos nos construirá.
Sem compreender o significado daquela linguagem tão cifrada e estranha, e com hesitação. Levantou o cálice brindando com ele, beberam ambos vagarosamente do champanhe bem fresco, que a acalmou, e como que sussurrando:
- Não combinamos que nos trataríamos informalmente? - Retomou ela.
- Quero viver consigo um amor fora do tempo, entre delicadeza e paixão. Temos ambos vidas estabilizadas e que nos dão segurança, nós precisamos, eu preciso, de criar espaços e tempos de emoção. Mas não quero perder a minha segurança e deduzo que também não quer perder a sua, manter  a nossa estabilidade e estatuto. Não só a estabilidade material mas também a relação com os filhos e  netos.
Ela hesitou antes de dizer alguma coisa, as palavras ficaram presas na garganta, não se sentia capaz de articular coerentemente os seus pensamentos.
Tinha-o conhecido pela NET, gostava do que ele escrevia, ao fim de algum tempo mantinham conversas regulares, trocaram contactos a sua vida tinha sido tocada pelas ideias dele, gradualmente sentiu-se presa a tudo o que procedia dele. Não conseguia compreender, mas sabia, que desde o momento que o conhecera, a sua vida ganhou cor e emoção. Não tinha a certeza de nada mas decidira que tentaria entrar na aventura. A atitude dele a todo o ambiente que rodeava aquele encontro parecia-lhe estranho, estranho demais, para quem como ela, estava habituada à segurança a uma vida feita de rotinas, as palavras dele não encaixavam bem no pensamento inicial que a levará até ali. Timidamente articulou.
-Não te compreendo, estás a propor-me para ser tua amante?
- Não querida amiga, não seremos amantes, seguramente no sentido que lhe está a dar, seria uma indignidade para o que sinto por si, e por certo não é aquilo que espera de mim. O que lhe proponho é vivermos um amor diferente e intenso,  viveremos duas vidas, criaremos dois tempos diferentes, um tempo comum e um tempo só nosso, no tempo comum viveremos a nossa rotina, no tempo só nosso será o tempo do sonho da fantasia da imaginação, da entrega sem limites ou de espaço de silêncio e meditação. Viveremos despojados de tudo o que nos lembrar este tempo, no nosso tempo seremos outros, desfasados do tempo comum. E seremos amantes no sentido mais nobre da palavra, amantes porque nos amaremos, viveremos no tempo só nosso, num amor sem tempo. Não trairemos porque viveremos duas vidas.
Parou de falar um pouco, tomou-lhe com delicadeza uma mão, delicadamente, beijou-a demoradamente com uma surpreendente ternura, segurando levemente a mão dela entre as suas, demorou-se numa caricia que para ela pareceu não ter fim e que desejou que nunca terminasse.
Naquele momento estava longe de imaginar, no que aquele encontro iria resultar mas sentia-se estranhamente bem.
Ainda não compreendia bem o que lhe estava a acontecer, quando aceitou aquele encontro, seria uma aventura, um encontro entre duas pessoas adultas, dispostas a ter uma oportunidade de experimentarem uma relação fora do casamento, com o único fito de quebrar rotinas, e quem sabe dar outro alento à sua vida de casada. Além disso era também uma oportunidade de provar a si própria que não estava acabada e que era capaz de sentir o prazer do sexo em toda a sua plenitude. No entanto todo o ambiente que ele proporcionou e todas as suas palavras, transformaram toda a situação, e passada a surpresa inicial, descobriu uma nova beleza e perspetiva neste encontro. Se inicialmente estava insegura, agora tinha decidido tentar compreender o que ele imaginara,  sentia-se agora tentada a participar integralmente em tudo, sem reservas e sem tabus.
Queria apenas compreender claramente a proposta que as palavras dele sugeriam. Quando aceitou o encontro, não imaginou os contornos que agora lhe pareciam ter. Para ela seria uma tentativa de redescobrir o prazer do amor. O seu marido vivia obcecado pelos negócios, viviam entre eles uma amizade serena, mas de que o amor estava ausente, mesmo quando se entregavam sexualmente, não existia fogo mas uma espécie de cumprimento de uma obrigação, que se tornava cada vez mais raro e quase sempre bocejante.
Tentou fixar-se nos olhos dele mas os óculos escuros impediam-na. Nos contactos pela NET nunca tinham recorrido ao vídeo, apenas fotos e troca de mensagens pelo chat de uma rede social. Mensagens que a foram conquistando, o acesso às muitas fotos em que ele aparecia sempre muito formal e com óculos, que agora sabia inseparáveis.
Enquanto ela se envolvia nestas conjunturas que lhe ocupavam os pensamentos que a levavam-na a um beco por um lado apetecível por outro assustador.
Ele despertou-a pedindo-lhe com ternura.
- Posso beija-la?
Sem esperar resposta colocou-lhe as suas mãos suavemente nas faces, beijando docemente e demoradamente nos lábios, não ofereceu resistência e deixou-se conquistar com aquele beijo sem comparação com os que já tinha recebido. Não lhe procurou a boca mas apenas os lábios, como se a quisesse saborear pela eternidade. Num impulso lançou-lhe os braços em volta do pescoço puxando a si numa entrega de que se julgava incapaz.
Gradualmente afastou-a, e calmamente foi dizendo.
- Voltaremos a encontrar-nos, aprenderemos a amar-nos no nosso tempo e no nosso ritmo. Construiremos um mundo só nosso e só nesse mundo, nos encontraremos até ao êxtase da entrega física e espiritual. 
- Estas rosas- continuou ele com o ramo na mão- Transportam beleza e aromas, mas também alguns espinhos, não há flor que simbolize melhor o amor, sei que é uma frase comum, só a forma como tratamos da rosa e a oferecemos, tal como tratar dar e receber o amor faz a diferença. Querida com este ramo me entrego. 
Parou de falar uns segundos, como para a deixar digerir as suas palavras. Ela demorou a reagir e quando se preparava para balbuciar algumas palavras, sem mais ele levantou-se e sem esperar resposta, tomou-lhe o braço com doçura, e perante o espanto dela, conduziu-a até à porta.
- Contactarei consigo, voltaremos a encontrar-nos.
Abriu a porta e nesse momento o cão entrou, ela recuou como que receosa, no entanto o cão entrou calmamente sem lhe ligar, despediram-se com um beijo na face.
Estranhado a forma um pouco rápida e com alguma rudeza da despedida, na rua notou, que apenas a ausência do cão, tornava o cenário diferente, a rua era de facto pouco movimentada, apenas uma pessoa já com alguma idade caminhava no sentido onde ela se encontrava, quase que se chocaram, fazendo-a reparar com espanto que na montra do estabelecimento onde tinha estado se encontrava um cartaz já muito envelhecido onde se podia ler, ENCERRADO VENDE-SE OU PASSA-SE e com um número de telefone absolutamente ilegível.
Voltou para trás, bateu com violência na porta, mas ninguém atendeu, o transeunte despertado pelo barulho aproximou-se e perguntou.
- A Senhora procura alguém? Isto, está fechado, há mais de vinte anos, a minha filha mora no andar de cima e não me lembro de ter visto por cá alguém.
- Tem a certeza? – Arriscou ela
- Absoluta minha Senhora
- Mas ainda agora eu estive lá dentro, com duas pessoas. – Replicou ela com veemência
O transeunte olhou para ela com um misto de curiosidade e de comiseração, relativamente nova, talvez menos de cinquenta anos, vestia de uma forma estranha, não se enganava vestia, como se vestiria a avó dele, provavelmente a senhora não estaria boa da cabeça, teria até fugido de um hospital psiquiátrico, como não lhe parecia que ela corresse perigo, ou que viesse a causar perigo a alguém, não tomou nenhuma atitude, além disso sabia que se chama-se uma ambulância se meteria em confusões, limitou-se a dizer em tom de conselho.
- Talvez seja melhor a senhora voltar para casa e descansar um pouco, o cansaço às vezes faz-nos confundir as coisas.
 Atarantada com estas palavras virou as costas ao homem e apressadamente começou a subir a rua sem saber que fazer nem pensar, um arrepio agradável percorreu-a sentia ainda a doçura do beijo, no entanto ficou com a firme convicção de não mais voltar àquele local. O telemóvel tocou, era ele, atendeu e a voz soou pausadamente.
- Não te preocupes, voltaremos a encontra-nos. – E desligou
Dentro do estabelecimento, em semi-escuridão, o cão Blinde e a outra personagem o empregado, que sussurrando para não haver a mais pequena hipótese de ser escutado do exterior.
- Não o compreendo como é que o senhor que é cego convida esta mulher para um encontro, se não a pode nunca conhecer nem sequer apreciar a sua beleza.
- Está enganado eu vejo para além do exterior, voltaremos a encontrar-nos e ela me descobrirá integralmente como eu a descobri a ela. Tome, o preço que combinamos para abrir hoje..
Disse-lhe entregando um envelope que o homem nem conferiu.
- Blinde – chamou dirigindo-se ao cão, enquanto pegava na bengala branca e colocava a trela na coleira do pescoço do cão.
- Vamos, saímos pela porta dos fundos.  
Quando se dirigia para a porta dos fundos com o cão pela trela, parou, voltou-se para trás, e perante o espanto do velho empregado foi dizendo.
- Quem lhe disse que eu que era cego?
O velhote olhou para ele ainda mais espantado e insistiu.
- Mas é cego ou não?
Com um sorriso enigmático nos lábios, tocou com a bengala no cão este recomeçou a andar, e saiu sem mais palavras.



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