segunda-feira, 21 de março de 2022

 

INVISIVÉL

 

O telemóvel tocou, um toque curto típico da chegada de uma mensagem, li primeiro muito rápido; sumariamente dizia que: a aula da noite tinha sido suspensa, no entanto…

Mais tarde no escuro da noite comecei a voltar-me para o essencial da mensagem. “Peço que, até à próxima aula escrevam uma história, verdadeira ou inventada”.

Estranho a escuridão torna tudo invisível, resta apenas a memória do que existe, mesmo no quarto onde me encontro, se tivesse que fazer uma lista do que me rodeia, provavelmente não conseguiria um relato completo.

A escuridão, afinal a falta de luz, pode ser assustadora, inibidora ou inspiradora. O desafio ia contra o espírito da escrita. Escrever, refletia, é um acto espontâneo não um acto de vontade. A palavra, tal como a corrente de um rio, sussurra no intimo do próprio impulso.

Na escuridão tudo é invisível, à luz do dia habita muitas vezes, a escuridão do nosso egoísta conforto, onde vivem muitas pessoas invisíveis.   

Adormeci e como por magia, continuei em sonhos o que comecei por delinear desperto, como personagem, narrador e observador.

No sonho, subia uma Avenida ampla cruzando-me com múltiplas pessoas, de que nada sabia e que nunca saberei, o meu destino era muito prosaico, uma pastelaria que ficava logo ao dobrar da esquina, mas primeiro tinha que comprar o jornal num quiosque que ficava perto da pastelaria, o meu passo era certo e moderado.

Para lá dessa esquina, no extremo oposto vinha uma mulher cujo rosto não conseguia divisar, e como observador via que era possível que em algum momento nos cruzássemos.  

A mulher caminhada com passos inseguros, mas sempre em linha, pelo meio da multidão que nessa hora percorria esse percurso, constantemente era alvo de encontrões a que reagia com infinita indiferença, o seu rosto apesar da maior proximidade continuava envolto numa densa névoa.

O meu eu continuava a caminhar, chegou ao topo da avenida virou à direita e dirigiu-se ao quiosque, pediu o jornal do costume, deteve-se a ler os Títulos, fui a contracapa para ver a tira de BD, sorriu e dirigiu-se à pastelaria.

No momento em que se dirigia à pastelaria, a mulher passava em frente da Igreja localizada naquela artéria, o passo continuava inseguro e incerto, subitamente parou, hesitou, a sua cabeça rodou em diversos sentidos, estranhamente na minha situação de observador, o rosto continuava para mim invisível e quando ao rodar a cabeça virou para mim a nuca, vi nitidamente o cabelo de uma cor acastanhada com algumas manchas esbranquiçadas nitidamente despenteado, talvez do vento que se fazia sentir. Pensei.    

Na pastelaria sentei-me numa mesa de dois lugares bem isolada pedi um café e comecei a ler o jornal, tempos difíceis os que vivemos, a tragédia que se passa no nosso continente mostra que o homem lobo do homem voltava a soltar de si os instintos de violência que o acompanhou ao longo da sua história e que pareciam vencidos.

A mulher hesitação vencida, entrou resolutamente na pastelaria.

- Ena.. Afinal, ainda que não totalmente sempre nos vamos cruzar.. Pensei observando

Continuei a seguir as duas personagens. Eu próprio e a mulher

Observando a minha personagem, notei, concentração absoluta no jornal, nada a perturbando nem a continua entrada e saída de clientes nem a movimentação dos empregados.

Na minha posição de narrador notei que a mulher entrou, olhou para algumas mesas vagas, com passo decidido dirigiu-se para a mesa onde o meu outro eu se encontrava, com uma voz ténue que soava como um SOS pediu licença para se sentar.

À minha personagem não chegou o tom angustiado da mulher, ficou perplexo, a pensar porque raio a senhora escolheu esta mesa? Não haviam mais mesas vagas? Estes pensamentos fervilhavam na sua mente. E sem levantar os olhos do jornal, respondeu que sim, acrescentado que já estava de saída, numa fuga de situação não desejada e incómoda.

A mulher, enquanto colocava um saco que trazia consigo na mesa, com o logotipo de uma loja de fotografias, de cabeça levemente levantada olhou-me e dolorosamente balbuciou.

- Fiz um exame e… Não continuou as palavras morreram-lhe nos lábios

Como narrador escandalizei-me, pois, o outro eu sem ter alguma vez reparado no rosto da mulher levantou-se dirigiu-se à caixa pagou pediu NIF, como bom cidadão, e saiu.

No caminho de saída virou-se reparou nos ombros da mulher a mexer-se parecendo soluçar, o cabelo acastanhado esbranquiçado despenteado como que esvoaçava. Saiu

No sonho o meu espírito, invadido por um sentimento de culpa travou-me os passos e decidi voltar à pastelaria na esperança de encontrar a senhora.

Na mesa ainda lá se encontrava a minha chávena, da senhora nem rastro. O empregado da pastelaria perguntou-me.

- Procura alguma coisa?

- A senhora que estava comigo.. Respondi, mas esta palavra “comigo” queimou-me os lábios.

­- Ainda bem que veio, a senhora esqueceu-se de um saco se não se importar de o entregar.

O empregado foi buscar o saco da loja de fotografias e antes que eu pudesse dizer alguma coisa, entregou-me.

Entretanto a mulher caminhava lenta e desordenadamente pela rua e centenas de pessoas passavam e seguiam apressadas e indiferentes.

De saco na mão, começou a tomar conta de mim a tentação de saber quem era a senhora. Sentei-me num dos bancos da avenida e com algum pudor tirei o envelope que lá se encontrava. O envelope era branco e sem nenhuma identificação exterior, hesitei entre abrir e não abrir. Resolvi abrir, talvez o envelope tivesse fotos com imagens de locais que eu pudesse identificar, única forma de conseguir entregar à pessoa certa.

Outra surpresa, o envelope continha apenas um documento, mas o cabeçalho e o rodapé tinham sido cuidadosamente cortados. O texto do documento era um relatório de um exame médico com algumas palavras a vermelho, sinalizando a gravidade da situação.

Em baixo, logo a seguir ao relatório médico, numa letra nervosa, mas legível a seguinte frase.

Tenho um tumor em estado adiantado e inoperável, precisava de gritar e perguntar, porque é que ninguém repara em mim? Quem ouve as minhas angustias?

A mulher continuava, mesmo numa tarde de sol luminoso, invisível perdida no meio da multidão, procurando desesperadamente que alguém a tirar-se da sua invisibilidade.

Despertei com o coração a bater descompassadamente, e no fim do sonho descobri que..  

A discrepância entre o que somos e o que pensamos que somos, entre o que sou e o que penso que sou, vai sendo constantemente revelada.

 

                                           Mire de Tibães entre os dias 8/03 e 10/03/2022

                                                             

                                                                  Herminio Silva

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