E se falássemos de Deus?
Se é algo angustiante e perturbador pensarmos no tempo que já vivemos,
revendo a nossa infância, na pobreza, mas também simplicidade e quietude que a
envolveram, constatando que essa quietude foi perturbada pelo desmoronar de
todas as muralhas que nos protegiam, de ver o mundo no seu lado mais cruel e
sem beleza, pois vivíamos num mundo onde a presença de Deus era natural e
respondia as nossas interrogações mais imediatas. A destruição dessas muralhas,
na maioria de nós adultos, provocou como resultado sonhos não realizados,
afinal na maioria das vezes nem sequer tentados. Andamos aos zig zags sempre em
busca do caminho certo e sempre a ter que corrigir o rumo, poucas vezes olhando
para dentro de nós. A ausência do Transcendente limita a descoberta do próprio
eu, sentimos que Deus não está presente como antes, mas poucas vezes ousamos
perguntar a nós mesmos se a nossa vida com a sua ausência, ou pelo menos a sua
pouca presença, tem algum sentido e responde às nossas ansiedades mais
profundas.
O que me ocorre, é que não chegamos jamais a possuí-lo. Pois quando
isso teria acontecido?
Como acreditar que uma criança ou um jovem pode sustentá-lo, se os
homens só o suportam com esforço, se o seu peso parece que esmaga os anciãos?
Acreditas que alguém, caso realmente o possua, pode perdê-lo como se perde uma
pedrinha qualquer, ou então que quem o tivesse só poderia ser perdido por ele? Contudo,
se Ele de alguma forma habitou a nossa infância, podemos intuir que Cristo que o
anunciou não foi uma ilusão, deixou-nos palavras novas sobre o amor.
Se muitas vezes tu sentes,
provavelmente com algum temor, que Deus também não existe agora, neste momento
em que falamos dele, até pelas maldades que se fazem em seu nome, então de que
vale sentir falta dele, que nunca existiu, como de algo passado, e procurá-lo
como se o tivéssemos perdido? Por que não pensar que ele é aquele que embora tenha
já vindo ainda está por vir, aquele que se encontra diante da eternidade, o
futuro, o derradeiro fruto de uma árvore cujas folhas somos nós? O que o impede
de projetar o seu nascimento nos tempos por vir, de modo a viver sua vida como
um dia doloroso e belo na história de uma grande gravidez?
Muitas vezes não percebemos como tudo o que acontece é sempre de novo um
começo. E como tal sempre renovado e sempre tão belo. Se ele é o mais perfeito,
o que há de pequeno não tem que estar antes dele, de maneira que ele possa se
escolher a partir da plenitude e da superabundância? Ele não tem de ser o
último, a fim de abarcar tudo? E que sentido teria para nós se aquele pelo qual
ansiámos já tivesse existido e não estivesse presente agora? Assim como as
abelhas juntam o mel, reunimos o que há de mais doce em tudo e o construímos. É
com o que há de menor, com o que há de insignificante (caso resulte do amor)
que começamos, em seguida recorremos ao trabalho e ao descanso, a um silêncio
ou a uma pequena alegria solitária, a tudo aquilo que fazemos sozinhos, sem
participantes e colaboradores, assim damos início àquele que não
presenciaremos, do mesmo modo que nossos antepassados não nos puderam
presenciar. E no entanto eles, que se foram há muito tempo, encontram-se em
nós, como projeto, como carga pesando sobre o nosso destino, como sangue que
corre em nós e como um gesto que desponta das profundezas do tempo.
Que razão ou motivo pode tirar a esperança de estar um dia nele, no
mais distante, no mais extremo?
Cara amiga, que estes dias de transição e interpelação sejam
justamente o tempo em que tudo em ti, está vivo como no passado, quando ainda
eras criança. Tem paciência, e pensa que o mínimo que podemos fazer é não
dificultar sua vinda mais do que o Inverno dificulta a chegada da Primavera que
mesmo assim explode em cor e beleza.
Com amizade
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