sábado, 21 de fevereiro de 2015

Faz sombra na minha varanda


É o começo de uma tarde de Verão, a avó saiu, a cadela mais nova está escondida na despensa, a casa está silenciosa e as flores continuam belas lá fora. Corre uma leve brisa que faz frio e nos acalma dos dias calorosos da época de estio e já faz sombra na varanda enquanto o Sol bate nas casas da frente. Há solidão e quietude neste lar e agitação, cor e vivacidade na rua, eu estou sentada perto da janela onde se cruzam estes dois mundos e me atingem na mesma intensidade, também em mim há silêncio e chilrear de pássaros, escuridão e luz, alegria e tristeza, tudo do mesmo modo. Vive em mim um vento que sopra de mansinho e faz balançar levemente o meu coração, e existem mares e campos, melodias e aromas, em tudo semelhantes ao que está de fora. É tão custoso viver com tanto vento e mar dentro, e é tão árduo fazer com que passem do âmago para o exterior, são palavras e gestos que se acumulam e fazem com que menos uma ave cante, que o mar se torne tempestuoso, e que o céu se feche. As palavras ouvem-se roucas, agarradas à raiz, ou não se ouvem de todo, o papel mantém-se em branco e nasce em mim uma recriminação de uma dever que se mantém por cumprir, como a oração da manhã de hoje que ficou por dizer. A folha fica estendida à minha frente e eu olho-a como se fossemos estranhos e eu não tivesse sabido nunca o que lhe escrever, mas num mundo onde tenho duas mãos infrutíferas, registar por escrito é a minha única obrigação e o meu único dom e se nasci foi só para dar corpo às dádivas das quais não me poderei separar em tempo algum. Por momentos, enquanto a mão está pousada sobre o papel somos um só e é como se a alma, o quotidiano e o abstracto se pudessem tornar concretos: visíveis, audíveis e tocáveis. Ter o compromisso cumprido faz com que os elementos se restabeleçam dentro de mim, quando a obra está terminada é que eu vivo, tudo o que faço a mais é nada. Quero abarcar tudo o que sou e tudo o que há e ao passo que o tempo foge, a memória e o que está escrito fica para sempre. Que não deixe jamais de existir estas tardes de Verão, em que a casa está vazia e se fica suspenso entre dois mundos onde existe regozijo e sossego e que o Sol não deixe nunca de iluminar, mesmo que apenas nas casas da frente enquanto faz sombra na minha varanda.

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