INVISIVÉL
O telemóvel tocou, um
toque curto típico da chegada de uma mensagem, li primeiro muito rápido;
sumariamente dizia que: a aula da noite tinha sido suspensa, no entanto…
Mais tarde no escuro
da noite comecei a voltar-me para o essencial da mensagem. “Peço que, até à
próxima aula escrevam uma história, verdadeira ou inventada”.
Estranho a escuridão
torna tudo invisível, resta apenas a memória do que existe, mesmo no quarto
onde me encontro, se tivesse que fazer uma lista do que me rodeia, provavelmente
não conseguiria um relato completo.
A escuridão, afinal a
falta de luz, pode ser assustadora, inibidora ou inspiradora. O desafio ia
contra o espírito da escrita. Escrever, refletia, é um acto espontâneo não um
acto de vontade. A palavra, tal como a corrente de um rio, sussurra no intimo
do próprio impulso.
Na escuridão tudo é
invisível, à luz do dia habita muitas vezes, a escuridão do nosso egoísta
conforto, onde vivem muitas pessoas invisíveis.
Adormeci e como por
magia, continuei em sonhos o que comecei por delinear desperto, como personagem,
narrador e observador.
No sonho, subia uma
Avenida ampla cruzando-me com múltiplas pessoas, de que nada sabia e que nunca
saberei, o meu destino era muito prosaico, uma pastelaria que ficava logo ao dobrar
da esquina, mas primeiro tinha que comprar o jornal num quiosque que ficava
perto da pastelaria, o meu passo era certo e moderado.
Para lá dessa esquina,
no extremo oposto vinha uma mulher cujo rosto não conseguia divisar, e como
observador via que era possível que em algum momento nos cruzássemos.
A mulher caminhada com
passos inseguros, mas sempre em linha, pelo meio da multidão que nessa hora
percorria esse percurso, constantemente era alvo de encontrões a que reagia com
infinita indiferença, o seu rosto apesar da maior proximidade continuava
envolto numa densa névoa.
O meu eu continuava a
caminhar, chegou ao topo da avenida virou à direita e dirigiu-se ao quiosque,
pediu o jornal do costume, deteve-se a ler os Títulos, fui a contracapa para
ver a tira de BD, sorriu e dirigiu-se à pastelaria.
No momento em que se
dirigia à pastelaria, a mulher passava em frente da Igreja localizada naquela
artéria, o passo continuava inseguro e incerto, subitamente parou, hesitou, a
sua cabeça rodou em diversos sentidos, estranhamente na minha situação de
observador, o rosto continuava para mim invisível e quando ao rodar a cabeça virou
para mim a nuca, vi nitidamente o cabelo de uma cor acastanhada com algumas
manchas esbranquiçadas nitidamente despenteado, talvez do vento que se fazia
sentir. Pensei.
Na pastelaria
sentei-me numa mesa de dois lugares bem isolada pedi um café e comecei a ler o
jornal, tempos difíceis os que vivemos, a tragédia que se passa no nosso continente
mostra que o homem lobo do homem voltava a soltar de si os instintos de
violência que o acompanhou ao longo da sua história e que pareciam vencidos.
A mulher hesitação
vencida, entrou resolutamente na pastelaria.
- Ena.. Afinal, ainda
que não totalmente sempre nos vamos cruzar.. Pensei observando
Continuei a seguir as
duas personagens. Eu próprio e a mulher
Observando a minha
personagem, notei, concentração absoluta no jornal, nada a perturbando nem a
continua entrada e saída de clientes nem a movimentação dos empregados.
Na minha posição de
narrador notei que a mulher entrou, olhou para algumas mesas vagas, com passo
decidido dirigiu-se para a mesa onde o meu outro eu se encontrava, com uma voz
ténue que soava como um SOS pediu licença para se sentar.
À minha personagem não
chegou o tom angustiado da mulher, ficou perplexo, a pensar porque raio a
senhora escolheu esta mesa? Não haviam mais mesas vagas? Estes pensamentos
fervilhavam na sua mente. E sem levantar os olhos do jornal, respondeu que sim,
acrescentado que já estava de saída, numa fuga de situação não desejada e incómoda.
A mulher, enquanto
colocava um saco que trazia
consigo na mesa, com o logotipo de uma loja de fotografias, de cabeça levemente
levantada olhou-me e dolorosamente balbuciou.
- Fiz um exame e… Não
continuou as palavras morreram-lhe nos lábios
Como narrador
escandalizei-me, pois, o outro eu sem ter alguma vez reparado no rosto da
mulher levantou-se dirigiu-se à caixa pagou pediu NIF, como bom cidadão, e saiu.
No caminho de saída
virou-se reparou nos ombros da mulher a mexer-se parecendo soluçar, o cabelo
acastanhado esbranquiçado despenteado como que esvoaçava. Saiu
No sonho o meu
espírito, invadido por um sentimento de culpa travou-me os passos e decidi
voltar à pastelaria na esperança de encontrar a senhora.
Na mesa ainda lá se
encontrava a minha chávena, da senhora nem rastro. O empregado da pastelaria
perguntou-me.
- Procura alguma
coisa?
- A senhora que estava
comigo.. Respondi, mas esta palavra “comigo” queimou-me os lábios.
- Ainda bem que veio,
a senhora esqueceu-se de um saco se não se importar de o entregar.
O empregado foi buscar
o saco da loja de fotografias e antes que eu pudesse dizer alguma coisa,
entregou-me.
Entretanto a mulher
caminhava lenta e desordenadamente pela rua e centenas de pessoas passavam e
seguiam apressadas e indiferentes.
De saco na mão,
começou a tomar conta de mim a tentação de saber quem era a senhora. Sentei-me
num dos bancos da avenida e com algum pudor tirei o envelope que lá se
encontrava. O envelope era branco e sem nenhuma identificação exterior, hesitei
entre abrir e não abrir. Resolvi abrir, talvez o envelope tivesse fotos com imagens
de locais que eu pudesse identificar, única forma de conseguir entregar à
pessoa certa.
Outra surpresa, o envelope
continha apenas um documento, mas o cabeçalho e o rodapé tinham sido
cuidadosamente cortados. O texto do documento era um relatório de um exame
médico com algumas palavras a vermelho, sinalizando a gravidade da situação.
Em baixo, logo a
seguir ao relatório médico, numa letra nervosa, mas legível a seguinte frase.
Tenho um tumor em
estado adiantado e inoperável, precisava de gritar e perguntar, porque é que
ninguém repara em mim? Quem ouve as minhas angustias?
A mulher continuava,
mesmo numa tarde de sol luminoso, invisível perdida no meio da multidão,
procurando desesperadamente que alguém a tirar-se da sua invisibilidade.
Despertei com o
coração a bater descompassadamente, e no fim do sonho descobri que..
A discrepância entre o
que somos e o que pensamos que somos, entre o que sou e o que penso que sou,
vai sendo constantemente revelada.
Mire de Tibães entre os dias 8/03 e
10/03/2022
Herminio Silva